Sermos o reverso, por Susana S. Aríns


Entrei em Reverso. Testimonios de mujeres bertsolaris, após ler a obra de ficção1 de Uxue Alberdi (aquela à que temos acesso em galego ou castelhano). O meu interesse primeiro era continuar a ler obras da autora. Um segundo, conhecer um pouco melhor o mundo do bertsolarismo, que me deixara fascinada o dia que visionei a peça com que Maialen Lujanbio ganhou o campionato de Euskal Herria em 2017. Um pavilhão ateigado com milheiros de pessoas para atender aos cantos improvisados por poetas. Fascínio. 

E por trás do fascínio, a realidade. 

O fascínio da excepção, porque não é o bertsolarismo, como tantos outros, lugar para mulheres. 

Neste ensaio, Premio Euskadi em 2020, a autora entrevista a quinze bertsolaras e analiza os seus testemunhos na procura de um padrão de condutas e violências contra as mulheres nesse espaço cultural. E como nesses romances mundo em que a escola, o hospital, a ilha deserta, não deixam de ser uma metáfora da sociedade da que fazem parte, assim as leitoras que não somos euskaldunas nem bertsolaris mas poetas galegas reparamos nas equivalências entre umas violências e outras. 

Com um grande fundo teórico feminista, a autora escolhe como guia na análise a uma amiga comum, que n’A Sega adoramos: Joanna Russ e o seu Cómo acabar con la escritura de las mujeres. Neste ensaio de 1983 Joanna Russ faz um percorrido pola literatura canônica em língua inglesa para marcar uma série de padrões de comportamento sistémico que limitam, reduzem e mesmo eliminam a participação das mulheres. Quando lemos Joanna Russ desejamos que alguém parasse a fazer essa análise no sistema literário galego. Uxue Alberdi fez o que nosoutras não. Ademais de desejar, tomou a iniciativa. 

O primeiro, não poder fugir do corpo. Somos corpos antes que nada e é o nosso corpo que sobe ao cenário e se expõe ao público que vê, define e julga. Com independência da sua identidade, as bertsolaris sempre serão mulheres e isso já as coloca na excepção, no estranho, na outridade. Se são femininas de mais ou de menos, se mostram decote ou o ocultam, se têm voz aguda ou grave, se cantam temas públicos ou privados, se fazem brincadeira ou são sensíveis: todo leva a marca mulher que denigra, reduz, limita ou, ao invês, que eleva porque “não parecem mulheres”.

E antes que o primeiro, a negação da gineologia. Surpreendia-me a mim que o bertsolarismo, vindo da tradição oral, estivesse em mãos masculinas, quando nas nossas outras literaturas foi o campo aonde foram expulsas ou relegadas as vozes femininas e, em consequência, despreçada (a tradição oral) como cultura menor. Porém, o bertsolarismo toma força no século XX, como representação da essência cultural euskaduna, gozando portanto, de grande poder simbólico. E não, não pode aver aí mulheres. E passamos a acreditar que nunca houve. Quando sim. Como a Aña Deabrua que desapareceu da cena uma vez que esta se instalou em teatros e licéus.

A obra avança en capítulos onde a ensaísta enuncia o padrão de violência (voz defetuosa, falsas categorizações, autoexigência destrutiva, hipersexualização e descorporeização, infantilização, paternalismo, fenda salarial, competência…) e a continuação coloca os testemunhos das bertsolaris oferecendo exemplos, vivências próprias conforme esse padrão. Combina, assim, teoria e experiência pessoal. 

A autora percorre primeiro as microviolências (lembremos, micro- não por pequenas mas por baixa intensidade) para passar a tratar as violências sexuais, que havê-las, hai-nas, onde não. 

Como leitora, o impacto mais grande dos testemunhos é conhecer os processos de emancipação das artistas. Várias delas descrevem a sua cega travessía até identificar, graças ao feminismo, as violências às que eram submetidas. Alguma mesmo abre os olhos no processo das entrevistas, chegando a verbalizar por vez primeira momentos bem duros da sua actividade bertsolarista. 

E como não, a proposta de construção. As iniciativas feministas para oferecer espaços, para criar rede, como a festa Ez da kasualitatea, onde só cantam mulheres. 

Porque não somos reverso do verso, mas verso livre. 


Uxue Alberdi: 
Reverso. Testimonios de mujeres bertsolaris. 

Tradução de Miren Iriarte. Reikiavik ediciones, 2021.

1Aqui a primeira dúbida: que recensiono? Porque todas as obras dela me tocaram: querer que existam as pitxinas de La trastienda, acompanhar a peregrinatio da jenisjoplin, desejar que não acabe nunca o jogo das cadeiras. Lede-lhe todo, sim. 

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