Contra a ortodoxia gramatical, por Susana S. Aríns


Que fazer quando a língua já não nos serve? Como contar? Que fazer quando o idioma nosso já não é de ninguém? A quem contar? Como contar-che, a ti, que quero, se não nos liga nem a fala, nem o lugar, nem o tempo? Que fazer?

Inventar novas línguas, nascer um crioulo de ninguém mas que deixe constância da incerteza, da dúvida, da dívida. Isto consegue Julia Rendón Abrahamson no seu Lengua ajena.

Sara é a protagonista da narrativa. É uma moça equatoriana que vive em Nova Iorque. Lá nasce a sua filha Lola e com ela, no mesmo parto, narrado no primeiro capítulo da obra, nasce também o temor ao arrebato, ao desarraigamento. Essa filha, ficará com as raízes ao ar, sem terra onde assentar? Qual a sua terra? O Equador, que nem a mãe visita há anos? A Catalunya, terra afastada do pai? Os USA, que a tratam como typical migrante? Há terra para as meninhas como Lola? Essa incerteza consome à mãe e vai-na debulhando para nós ao longo das páginas misturadas com a poética tenrura que utiliza para lhe falar à filha.

A estrutura da obra é singela ao tempo que complexa de desenvolver. Quase todos os capítulos começam com a protagonista acompanhando numa cena quotidiana à criança. Nesse processo de cuidado ou acompanhamento saltam as faíscas que acendem a reflexão, o recordo, a consciência, a (in)decisão. E assim, passeando pola cabeça da Sara vamos tendo acesso à sua história de vida, à da sua família, e ao processo de escolha entre voltar a um Equador que já não existe, pois ela foi-se embora há anos, ou ficar numa Nova Iorque que não é sua, que não sente como sua.

Em realidade acompanhamos a Sara no seu processo de construção, porque o que está a fazer é a procura de como contar-se, que dizer de si e como à sua meninha, a herdeira, a continuadora da estirpe. Se há estirpe que continuar. Há estirpe? E nesse procurar como contar-se chega ao com que: que língua usar.

Porque um dos mais grande conflitos de Sara é ver que a sua cativa fala uma língua alheia. Uma língua outra que mutila as pontes de comunicação entre elas. Que fazer quando a menina pede para ir à piscina because she loves to swim? Mas, aquilo que falas tu é em realidade a tua língua. E o seu espanhol equatoriano? Não perde cada dia a língua a golpes de ausência?

Embora a protagonista equatoriana e a contextualização ianqui, em toda a leitura senti a proximidade dessa mãe perplexa que não se sente quem de resolver qual a sua identidade e qual a da sua descendência. A centralidade da língua como elemento que nos constrói e, ligada a ela, a brutal violência de sentir como nos é arrebatada estão tão bem exprimidas que podem fazer perceber a luita diária que muitas fazemos por manter as nossas falas subalternas.

Mas a proximidade não a marca só o conflito linguístico que também vivemos cá (com o matiz de nós sofrê-lo na própria terra e não no país de migração) mas o fato de colocar todo o processo de reflexão no quotidiano: como falar-che, penso enquanto te acompanho a uma festa de aniversário, que contar-che de nosoutras, enquanto mudo os teus cueiros, dizer-che alguma vez esta tristeza, enquanto deixo cair a água tépida sobre a tua cabecinha ensaboada.

Em paralelo, ao inserir a narrativo no quotidiano de uma mãe migrante em Nova Iorque, cruzam-se com o tema principal outros elementos que fazem da obra um frondoso carvalho com múltiplas ramas, como a árvore de Central Park onde ela e Adriá soterraram o cordão umbilical de Lola, com “raíces tan largas que daban la vuelta a la tierra, subían al cielo y volvían a bajar”.

E adoramos a ousadia da autora para misturar variedades e línguas numa obra literária inserida em um sistema (o castelhano) absolutamente reacionário a todo quanto cheire a afastamento da ortodoxia gramatical.



Julia Rendón Abrahamson: Lengua Ajena

De Conatus, 2022

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