Agnes, antes conhecida como Anne, por Susana S. Arins



Sempre me maravilhou a capacidade imaginativa das outras. A facilidade para ver a história por trás da frase rascunhada, dos restos de comida num prato, da visão da camélia na cama da casa museu que todas visitamos. 

Ficou inoculada em mim, como droga em veia, a Judith imaginada por Virginia Woolf a partir da biografia do Shakespeare. Uma irmãozinha que faz camas e remexe a colher na pota enquanto o irmão aprende latins. Uma irmãozinha que atende às ideias que lhe vêm à cabeça perante a visão dos restos de comida num prato, mas que não sabe escrever e lá vão as ideias sumidas no ar. Uma irmãozinha que quer ser atriz, mas acaba esquecida na lama porque já se sabe que as mulheres, atrizes, mesmo o que se diz atrizes, não. 

Que tantas vezes pensei na possibilidade de escrevê-las. A elas. Às irmãs dos Shakespeares, dos Valhadares, dos Pondais, aquelas que ficaram a cerzir meias e não puderam pagar papel e pluma. Mas sempre pensei, também, que me falta imaginação e me sobra raiva. 

Por isso agora fiquei estonteada, maravilhada e aturdida na leitura do Hamnet, de Maggie O’Farrell. Partindo dos dados conhecidos da vida e da família do dramaturgo famoso, recria, revive e devolve à vida os espectros que pareciam ser a irmã, a mãe, a esposa, as filhas. As elas. E numa sorte de justiça poética são elas a obterem nome e ele a receber, nunca, em todo o romance, um nome próprio. Sempre o pai, o homem, o irmão, o cunhado, o ator, o filho. 

Porém, para mim, a surpresa da proposta de O’Farrell, é converter aquilo que poderia ser uma vingança literário-feminista (e que eu acolheria bem feliz), noutra cousa. A autora constrói um texto cheio de personagens a ver o mundo, e nosoutras a acompanhá-las na olhada. A voz narradora saltita de Agnes a Eliza a Joan a Judith a Hamnet, mesmo a gatos e a cernícalas, como se duma pulga se tratasse e assim vai elaborando a comunidade, o mundo em que o artista cresceu, as pessoas com quem se relacionou, das que se apaixonou e as que engendrou. 

A protagonista do relato não é a irmã que quer ser atriz. É mais, nunca, em toda a trama, afirma desejar isso. A protagonista absoluta é Agnes, que tem de esposo um escritor ausente agora, antes feliz com ela. Agnes, a mulher especial, Agnes, a que é filha de bruxa, Agnes a que criava um falcão (cernícala) e fugia aos campos com ele (ela), Agnes a que pariu no monte, Agnes a que sanda com ervas, Agnes, a única que vê os extensos horizontes que há habitar o seu homem. É tão imensa a Agnes que imagina a autora, que eclipsa totalmente a Anne Hathaway que dizem os papeis que existiu uma vez em Stratford.

O’Farrell constrói na figura de Agnes um canto aos cuidados. Todo acontece nos quartos interiores da casa, na cozinha, nos dormitórios, nas cortes dos animais, no lagar da cerveja. Os acontecimentos pilham às protagonistas aquecendo água para a sopa, branquejando a roupa, remendando as camisas, indo ao mercado vender ovos e mercar pão. Longe dos teatros e das outras cortes, contasse-nos a vida das que nunca saem nas obras dos grandes dramaturgos e os espaços que nunca se aparecem nas suas comédias. 

O’Farrell constrói na figura de Agnes um canto elegíaco. Também. Um lamento fúnebre perante a perda de um ser querido. A perda dificilérrima: a do filho ou da filha. Hamnet, que dá nome ao livro, é o filho que leva a peste. O irmãozinho que se troca pola irmã gémea e doente para que esta sobreviva, numa homenagem (assim o quero ver eu) àquela Judith que imaginou Virginia Woolf. E a segunda parte do livro, após a morte do meninho, vira num reconto das tentativas inúteis dos seus seres queridos por continuar a vida como se Hamnet não tivesse existido, ou morrido, ou não se sabe que. 

O’Farrell constrói na figura de Agnes (e do dramaturgo, também) um canto ao encontro na dor. A perda e ao encontro. A ausência do outro, da outra, para o consolo. A falta de comunicação entre pessoas que estão a sofrer o mesmo. Ou distinto. 

E acaba-o numa epifania: sim, a literatura pode salvar-nos.


Hamnet, Maggie O’Farrell, Libros del Asteroide, 2021


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