Galicia y sus gentes, por Susana S. Arins



Prometo que comecei a ler de corpo aberto, interessada. O naufrágio do Santa Isabel de fundo, a ilha de Sálvora [esse chapéu do Principezinho a descansar no horizonte da ria de Arouça], as pedras de Sagres… Espaços conhecidos e histórias que mexem afetos privados faziam de mim uma potencial leitora entusiástica.

Mas tropecei. Li os primeiros capítulos, continuei nos seguintes fustigada pola estranheza e acabei o livro com a esperança de perceber o quê. O quê era a dificuldade, a complicação para eu entrar nessa voz narradora, para que ela entrasse em mim, que já disse, estava de corpo aberto.

O quê era a língua. O quê é a língua.

La nostalgia de la Mujer Anfibio é um romance de Cristina Sánchez-Andrade cuja protagonista, a mulher anfíbio do título, é Lucha, colona da Ilha de Sálvora que lá vive quando o naufrágio do Santa Isabel. Na madrugada em que o vapor rebenta contra a pedra de Lapagar, Lucha conhece um dos náufragos e tem um encontro sexual com ele. Esse encontro condiciona toda a sua vida posterior e, sem ela ser mui consciente, a vida de quem a rodeia. Sánchez-Andrade aproveita também para a trama o boato do tesouro do Santa Isabel, pois as mesmas heroínas que nessa noite salvaram muitas das pessoas que iam abordo foram depois acusadas de pilhagem e de agochar alfaias e dinheiros por entre os cons da ilha.

E Lucha e as suas vizinhas do lavadoiro, e o seu homem, todas marinheiras ou filhas de marinheiras, todas de Sálvora ou Aguinho 1 entre os anos 20 e 70 do século XX, não falam por si. O tempo todo as li ventriloquadas. Como nesse documentário do NO-DO, Galicia y sus gentes, que nos mostrou Beatriz Busto Miramontes no seu Um país a la gallega: Galiza no NO-DO franquista, aqui as vozes são remedadas, sequestradas pola narradora, de maneira a ficar subalternas perdidas, que diria Gayatri Spivak. A narradora escreve-as em castelhano e não seria perturbador se não metesse de por meio palavras e expressões em itálico que pretendem ser galego (às vezes é, às vezes não2 ), mas que não são, porque estão enxertadas de maneira ocasional e com o único objetivo de marcar o carácter indígena das personagens. Ou marcar a sua brutalidade, pois em não poucas ocasiões o galego aparece para insultar e pecadentar polas bocas. O resultado é de um regionalismo exotizante que pensei que já não se dava no século XXI.

E como a língua, o território e as suas habitantes. A olhada da narradora estende-se por espaços e pessoas desde a distância superior que não contextualiza, que não faz por perceber, que, por exemplo. tudo o conta desde um outro mundo que não é o dessas gentes. Como o ginecólogo que atende à protagonista:


-Estos choricitos, son para usted, doctor López - le dijo tímidamente. Y como el médico seguía a lo suyo, leyendo los infomes, Lucha abrió la bolsa y le mostró su contenido. Un tufo a pimentón picante se propagó por la estancia-: los hice en casa con mi nieta. Son riquísimos.

El médico dirigió una mirada de desdén a la bolsa. Con una mueca de asco la alzó con los dedos y la depositó en el suelo. No comentó nada al respecto, cosa que decepcionó un poco a Lucha (3) .


Assim, com uma olhada de desdém e uma careta de nojo, se derrama a voz narradora polo texto. A perspetiva é absolutamente colonial. A autora escolhe elementos tópicos da cultura galega e os coloca de modo essencialista na sua obra. Descreve um mundo estático, que não muda nas maneiras mais “puras”, por muito que o século XX entre a saco pola boca da ria. Um bom exemplo é a personagem da meiga Soliña, parteira, bruxa, compostora, que faz as mesmas beberagens desde o ano 1921 até o 1974, sem lhe acrescentar aos sapos e corujas, aos peidos de cabujas malparidas nem um triste copinha de Sansón.

As mulheres recebem com receio as modernidades todas do progresso, e nem sequer as sabem nomear: a penicilina é “penilina” ( pág.76), o ginecólogo é o “médico dos moluscos” (pág. 82), querem ir à escola para não ser “alfabetas” (pág. 100), ignoram o que é a democracia 4 e o consenso (pág. 124), o jubileu de Isabel II é o “jaleo” (pág, 259), sempre pronunciando mal, outra vez a língua como remedo, yo Tarzán, tú Chita.

É em um mundo assim, antigo e estático, ao que pode chegar qualquer fala-barato a enganar a vizinhança. A personagem de Ziggy Stardust só tem sentido em um espaço isolado, sem relação com o mundo. Mas não é essa a situação do território e o tempo em que se situa a história. Aguinho, Ribeira, toda a ria de Arouça, são comarcas dinâmicas que se adaptam aos tempos e a onde chegaram, antes que a outras zonas da Galiza (e seguramente das Espanhas) as músicas rock e pop, os pica-discos, mesmo as drogas, já sabemos, através dos marinheiros embarcados na pesca de altura. Que apareça um hippie em Aguinho no ano 1974 não é novidade. Os meus tios mais novos eram hippies daquela e nasceram na outra banda da ria.

A autora coloca Aguinho em uma nebulosa, tal qual, de nevoeiro, marusia, violência, ritualidade, ignorância e cheiro a bosta que nos afasta a algumas leitoras como a achega a tantas outras.

Porque a imagem de Um país a la gallega continua a imperar (tal qual, outra vez).


Cristina Sánchez-Andrade:

La nostalgia de la Mujer Anfibio.

Anagrama 2022.


1 *Oguiño, dize-lhe a autora, não sabemos por que, tendo em conta que o resto de toponímia pretende ser o correspondente com a realidade não literária.

2 *Nai que lles pariou!, exclama Lucha na pág. 215

3 La nostalgia de la Mujer Anfibio, pág 81.

4 como se não a viveram antes de 1936. 




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