De pombas e papagaios, por Susana S. Arins

Fiz estudos universitários em Santiago. E quando fui viver lá, as vozes baixas falavam do bairro do Pombal. Umas advertiam para não nos achegar a esse lugar de gentes perigosas e atividades inominadas. Outras convidavam a ir e rejoubar e rir, e fazermos zombaria das putas e, menos, dos putanheiros. 

Não era complicado. Nos passeios entre campus norte e sul, o Pombal exercia de limite, fronteira e ponte. E não houve medo às primeiras vezes que por lá passei. Também não zombaria. Houve a surpresa da degradação. Porque não dei com as putas de Pretty Woman nem os putanheiros Richard Gere, mas com mulheres gastas envolveitas em negligés de feira à porta de casas velhas em risco de derrubo. Senhoras que podiam ser avós, cousa que eu não imaginara na minha inocência adolescente. E putanheiros a exsudar álcool e ressesso cheiro agre. 

Acho que foi esta a razão de que a leitura, contemporânea à sua publicação, do Papagaio de Luisa Villalta e Maribel Longueira deixara em mim um fundo pouso de verdade. 

O Papagaio que elas descreviam e despediam era o Pombal que eu ajejara polo olho da fechadura. Luisa Villalta poetou a partir do trabalho fotográfico de Maribel Longueira. A fotógrafa fez seguimento das obras de derrubo de boa parte do bairro do Papagaio corunhês, em que abundavam os locais onde eram prostituídas mulheres. As fotografias rastrejam entre cascalhos, poeira e maquinária pesada os sinais das mulheres que lá viveram. E posteriormente a poeta faz leitura, a sua, desses sinais. Poemas e fotografias acompanham-se sem invadirem os espaços de uma e outra, sem se calcar os pés, para estabelecer uma forte ligação entre o bairro destruído e as mulheres arrasadas nele: Pouco pagou por lle rachar / o virgo comunal à Cidade envisa / como todas as mociñas, soñadora de homes / sem seme

Chega a modernidade, o capitalismo urbanista, a expulsar da cidade, como anjo ejecutor, as representantas do vício e a luxúria. É preciso remetê-las novamente para as margens, agora que as avenidas, os sumidoiros e a luz pública todo o ocupam. E Luísa Villalta e Maribel Longueira criam um réquiem por aquelas anônimas que ninguém identifica, porque mudam o nome cada dia, para non repetir / a muller vencida e esquecida / que acabam de coñecer

Papagaio aparece dividido em três partes: per amores , tão em vao , e caeu, fraseados que fazem parte de uma pastorela de Dom Dinís. Abre-se e fecha-se o volume desde a sororidade: a autora renuncia à palavra puta explicitando-a no poema: debería ser final e non comezo. E sem utilizar a expressão atual de “mulheres prostituídas1” poetiza-a: a puta é sempre a irmá da que quizá sobreviva ... /… a irmá inverno que florece a destempo .../… a irmá máis pobre que a pobreza / pero non puta aínda

Luísa Villalta navega entre a primeira e a terceira pessoa em quase todos os poemas. Outorga voz àquelas que habitam por trás das múltiplas janelas que fotografa Maribel Longueira. É a Margarida que lava o cheiro a vaca que lhe deixam os homens, a mulher sem nome que cobra por todo fora o desprezo, as amigas que compartem seneira de janela a janela. Ou reflexiona em plural sobre as experiências de qualquer de nosoutras, mulheres. È a adolescente (eu?) que espia para imaxinar qué sería o sexo tan falso do amor. É a freira que se persigna enquanto lembra aquele menhinho que nunca foi e que foi dela. Ou se dirige em segunda pessoa ao putanheiro, àquele que te sentes dono de um corpo e ignoras deliberadamente que cada mamada é um chute para manter a anestesia da vida

Luísa Villalta acaba livro explicitando-se como eu lírico, explicitando-se como mulher violentada, potencialmente prostituível, como qualquer de nosoutras: eu non podo xa ser diferente de quen é mirada / cando a entreperna do obreiro me confonde / e se oferece perguntando: canto?.

Os poemas constroem uma história, uma memória que poderia ser, de mulheres que nunca têm história nem ficam nas memórias porque ou pai ou mãe, botaram a chave / que pechou tras de min a porta do mundo / e me obrigou a sair / sem encontrar a saída. Os versos crescem-se desde a destrução, da ruína, para edificar uma ponte entre o Papagaio e o Pombal, entre as pombas e as papagaias. Uma voz potente que nos acompanha quando já o papagaio não existe, que caiu, em vão, e não per amores. 


Papagaio

Maribel Longueira e Luísa Villalta 

Edicións Laiovento e Deputación da Corunha, 2006




1Utilizamos esta expressão para marcar que a mulheres prostituídas são vítimas de uma prática sistémica em que os varões se garantizam o acesso grupal e regrado ao corpo das mulheres. 

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