Uma bofetada na cara, por Susana S. Arins


Quando menina incorporei-me a Abrente, agrupamento folclórico que tínhamos na escola do Fojo. Aprendíamos moinheiras e jotas e dançávamos nas festas várias da redonda e nos eventos escolares. Lembro um dia, nas festas patronais da nossa aldeia. Vejo-me no campo da festa com as companheiras, em um curro limitado pola vizinhança a ver-nos dançar. Não lembro se nesse momento eu estava na fileira a fazer ponteados ou a vê-los fazer às grandes. Sei que escuitei fugir da boca de Lola da Malata uma única palavra: Pobrinhas!

Aquele dia chocou-me, gravou-se em mim e não percebi o sentido dessa frase. Hoje, após a leitura de Beatriz Busto Miramontes, acho que era a expressão da resistência à imagem de “gallegas” que transmitíamos com as nossas moinheiras e jotas. Lola sabia aquelas não serem as danças que ela aprendera, nem aqueles fatos encarnados com cinta de veludo os fatos que ela punha quando nova. Viu-nos, meninhas de seis, sete, oito anos, sem necessidade de o teorizar, como agentes de folclorização e por isso sentiu pena de nosoutras.

E hoje, ao virem-me à mente estes pensamentos, sei que Beatriz Busto deu no alvo na sua proposta de leitura. Um país a la gallega. Galiza no NO-DO franquista é a versão divulgativa da tese de doutoramento da autora. Um dos grandes acertos do livro é esse: Beatriz Busto pui os elementos académicos para acrescentar a experiência pessoal1 e é esta combinação, o fundo conhecimento somado ao seu eu mais encarnado2, que fazem o texto dinâmico, atraente e engaiolante. O outro acerto da obra é a sua proposta de leitura dupla. Em cada capítulo é-nos pedido que visionemos certos produtos do NO-DO, selecionados por Busto como exemplificadores daquilo que quer explicar. Pretende assim que por momentos aprendamos, ou nos divirtamos, ou nos zanguemos ou riamos às gargalhadas ou sejamos consumidas pola indignação. 

E consegue. 

Um país a la gallega analisa a visão que da Galiza e das galegas ofereceu o NO-DO, noticiário oficial da ditadura franquista (e mais). Destaca a autora a marca que essa Galiza inventada deixou na maneira de nos ver desde fora e, sobre todo, como marcou o nosso auto-conceito identitário, construido, segundo ela defende, em espelho com o NO-DO, ou bem reproduzindo ou bem rebelando-se contra essa imagem. Devemos ter em conta que o NO-DO foi de emissão obrigatória em todos os cinemas entre 1943 e 1975, mas continuou a produzir-se até 1981. E nesses anos todos era a visão única que de si próprias recebiam as (galegas) espanholas. 

Beatriz Busto mostra-nos como um dos elementos mais importantes para construir a imagem de Galiza (Espanha) foi o folclore, através do desmedido e nunca bem infamado trabalho da Sección Femenina, braço dançante da Falange. Comprovamos em vídeos visionados e capítulos lidos como a diversidade de danças é reduzido e simplificado e uniformizado (a palavra mais acaída para a transformação das vestes). Sempre soa uma única mesma música e todas as raparigas vestem semelhante: pouca diferença faz uma cántabra de uma galega. Essa imagem folclorizada era reproduzida em espetáculos, inaugurações, festas e eventos vários, como continuávamos a fazer as meninhas do grupo Abrente anos depois. Outro dos objetivos dessa uniformização era o controlo dos corpos, a sua contenção. Marcas de género inexistentes na dança tradicional, impõem-se desde o NO-DO para muitas as aprendermos como tradicionais (fileiras de homens e mulheres, gestualização diferente na dança deles e delas, a obrigatoriedade se serem eles a sacar ponto, etc.).

O outro elemento que se destaca na leitura do livro é a ausência de voz das subalternas. O documentário Galicia y sus gentes é mostra perfeita das teses de Gayatri Spivak. É um horror (que nos vejamos consumidas pola indignação, pretendia a autora) ver a essas gentes protagonistas do documentário, já não mudas, mas remedadas e com as suas vozes sequestradas polos roteiristas e locutores do NO-DO. Beatriz Busto fai-nos ver com claridade como o esterótipo do galego embora assente em ideias prévias (a visão do galego no Século de Ouro espanhol, por exemplo) foi recodificado e difundido polo NO-DO, de maneira que nos foi inoculado de uma maneira inconsciente, muitas vezes, e brutal, sempre.

Ao começo, no grupo folclórico Abrente éramos só raparigas a dançar. Os meninhos eram tamborileiros ou gaiteiros. Andando o tempo foram-se incorporando rapazes à dança. Lembro uma coreografia (lembro bem todas, dançamos durante anos e anos e anos as quatro mesmas) em que eles faziam o arremedo de nos levantar as saias e nosoutras respondíamos com uma lapada (falsa, falsa) nas suas faces. Qual foi o meu choque ao visionar a reportagem da XVII Demostração Sindical, de 1974 (ano da minha nascença), e ver essa mesma coreografia (elas a abofeteá-los a eles) representada por centos de dançarinxs em louvor do ditador. 

Pobrinhas!, que diria Lola da Malata.



Beatriz Busto Miramontes: Um país a la gallega. 

Galiza no NO-DO franquista.

Através Editora. 2021.


1Integrando por tanto uma epistemologia claramente feminista.

2Expressão da autora na pág. 31.

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