Ritos, jogos e passagens, por Susana S. Arins


Algumas não gostamos da literatura fantástica. Melhor, não gostamos da literatura ambientada em lugares fantásticos ou em distempos ucrónicos. Em troca, adoramos essa literatura que nos coloca o estranho, o surpreendente, o impossível, ao carão da colherinha e o pocilho do café, açúcar sim, obrigada. No quotidiano. 

Esses são os relatos que mais gozei no conjunto editado sob o nome O axolote (e outros contos de bestas e auga), de Lara Dopazo. Ainda que a autora nos dê pistas no título sobre aquilo que outorga unidade às suas narrações, eu acho que é esse achegamento desde o dia a dia, desde as rotinas, que faz que prendamos em cada uma das silvas. O banho diário, o momentinho para sentar no banco ao sol, o passeio com o cadelo, preparar uma churrascada, fuchicar na rádio à procura de emissoras. 

Os treze relatos que compõem o volume oferecem-nos diversidade de lugares, de protagonistas, de vozes narrativas, de mitologias inspiradoras. A autora domina umas e outras, conseguindo que entremos em cada uma das propostas dispostas a ser surpreendidas umas vezes, convencidas de que não será possível a surpresa, outras, e dando o conto por acabado sempre com um palavrão: hóstia! Sempre. 

É complicado manter em cada relato essa reviravolta ao final. Em algumas ocasiões é a voz narrativa, que não desvenda a sua identidade até o último parágrafo do conto, outras vezes é a capacidade para re-escrever mitologias reconhecíveis, as mais, o final não explicativo, que deixa em nós a responsabilidade e a vontade de decidir que raios aconteceu na ilha das mulheres ou com o avô Dima. 

A autora tem uma grande capacidade para titular os relatos. Quase nunca oferece o conto aquilo que o título promete e este adquire novas significações uma vez chegado ao final. O mais arriscado era, sem dúvida, o que dá nome ao conjunto. Algumas sentimos o eco do Axolotl de Julio Cortázar e entramos com o medo de dar com um remedo deste autor. E não, Lara Dopazo foi quem de apagar qualquer som afastado e deixar-nos pampas com a sua água criónica. 

Do que mais gostamos são das histórias com base tradicional e re-elaboradas pola autora. O jogo com as mitologias. E que se misturem as umas com as outras. Que Xochitónal fale galego, ou que Rosa Rosales fale mexicano, mesmo tendo saído nunca do Uruguai. Quiçás, nesse sentido, o nosso conto favorito é o titulado O Corpo: contemporaneidade, tradição, lenda urbana, voz narrativa inesperada. Ou não. O que se diz As moscas: ambientação, noite, tronada, e só a burra que pare. Ou não. O carpincho: o prodígio castigador e castigado. Ou não… 

Já o diz o refrão: se escolher não podes, lê ao completo. 


Lara Dopazo Ruibal: 

O axolote (e outros contos de bestas e auga) 

Galaxia 2020

Comentarios