Carapuchinha entre lobos, por Susana Sanches Arins



Admito: após a escritura do seique deixei de ler narrativas do 36. Todas as tentativas provocavam em mim fastio, secura na boca, aborrecimento. A dificuldade de contar, de narrar o horror, de transmitir os silêncios e as oquedades, a dificuldade para respeitar a dignidade das vítimas mesmo com a sua dor em exposição pública que eu encontrei, essas dificuldades, apareciam-se-me ausentes nas narrativas de outras, não por inexistentes, mas por desexpressadas. 

Até chegar a este pequeñas mujeres rojas de Marta Sanz. Assim, minúsculo, como o meu querido seique. Houve de ler aos poucos, descansando na viagem, justamente polo horror, pola crueza, mas também porque gozava o caminho da literatura e queria continuar nesse gozo masoquista de ler tão maravilhosamente narrada a dificuldade de narrar, de transmitir silêncios e oquedades, de respeitar a dignidade das vítimas mesmo com a sua dor em exposição pública. 

Marta Sanz conta-nos a estória de Paula Quiñones, voluntária que gasta as suas férias em colaborar na exumação no meio de Castela, Azafrán con cheiro a Azufrón, de fojos anónimos esquecidos da repressão franquista. Várias vozes nos acompanham na narrativa: a própria da Paula, que reporteia, em cartas ainda escritas em papel, como aquelas ridículas de Pessoa, as suas impressões e descobertas á sua amiga Luz Arranz; a amiga Luz Arranz, que se vê na necessidade de pesquisar e pôr por escrito todo o acontecido nesse verão, para ela poder perceber, para que a memória seja recordo; e os mortinhos das gávias, voz em coro grego que adverte, corrige, comenta e se diverte entrechocando paletilhas e cotovelos. 

As vozes narradoras têm em comum um estilo barroquizante que nos obriga ás leitoras a ficar atentas se não queremos perder o fio. Lea despacio, avisam os mortinhos quando lhes toca contar. E essa advertência tem todo o sentido. As vozes narradoras levam décadas caladas, a acumular furiosas palavras nas gorjas e quando se vem libertadas não podem evitar que o discurso arroie, água lodosa como da lagoa Madriquera, da lagoa Casabela, da lagoa Alta. De uma palavra nasce outra, em associação de ideias pessoal, privada, que as narradoras nos deixam uliscar, como sabujas a seguir o rasto, da outra ideia desprende-se uma enumeração em aparência infinita, da enumeração nasce a referência cinéfila, musical, culinária e volta à corrente e a continuar a louca descida polo conto. 

E têm em comum as narradoras o seu posicionamento ético claro e absoluto. São testemunhas de parte (algumas delas mesmas) e não negam a subjetividade e explicitam-na sempre que é necessário e renegam da limpeza e da assepsia e convertem um aparente realismo sujo numa reivindicação da implicação (ai vai, a rima) pessoal naquilo que se narra, a necessidade de abaixar as mãos e encher de terra as unhas e de lama as meias e comer terra de sabor acre se realmente queres escavar a fossa. Luz, Paula e os mortinhos da gávia desprezam a economia da linguagem, essa falácia que quer fazer da literatura espaço mundo, impoluto: “Ensuciaremos la literatura con panfletos y los panfletos con la literatura porque las palabras no son un cuarto que pueda desinfectarse con lejías. (.../…) Hemos aprendido que nunca debemos desechar una palabra porque atesorar palabras es un modo de derivar, coleccionar, construir pensamientos, y una estrategia perfecta para hacerles perder el tiempo a quienes defienden el ahorro y la eficacia (págs 332-333). Quer dizer: ética e estética caminham fundidas nesta obra. O estilo acompanha a ideologia. E as narradoras berram-no bem alto. E nosoutras celebramos. 

O conto que conta Marta Sanz é duro. Como o da Carapuchinha ou o de Barba Azul ou o da Branca de Neve. E deles bebe a autora, nessa metáfora de cazadores no bosque, depredadores no pinheiral, carnívoros a viver entre veganas, avoitres a dar aviso da carronha, que impacta. O conto é uma sucessão de imagens, metonímias, comparações, hipérboles, e etecês que viram alegoria e nos acompanham capítulo a capítulo para oferecer sentido a esse dioivo de rio que vai cheio e leva carvalhos e folhas e traz vozes marmuradoras. 

O conto que conta Marta Sanz é duro. Golpeia em nós e lastima e abre feridas. E por vezes perguntamo-nos se é necessário contar assim tão duro, assim tão lastimosa e contusamente. E quando acreditamos que mesmo pode ser que não, são as próprias vozes que reflexionam sobre a dureza do seu discurso e nos obrigam a reflexionar sobre como narrar, como contar, como continuar a fazer poesia após Auschwitz. E decidimos continuar a leitura porque construir pensamento é necessário. 


O conto que conta Marta Sanz é duro. Com a descrição do artefacto é suficiente, afirma Luz Arranz. E tem razão. Não podemos colocar-nos no lugar das vítimas. Nosoutras não fomos torturadas, não fomos repetidamente violadas, rapadas, obrigadas a suplicar por uma vida que já nos tinham arrebatada. Porém, sem palavras, sem artefactos livros, artefactos romances, nada seria suficiente. E os mortinhos continuariam com a fúria engasgada na gorja entre os detritos do jardim das rosas onde rainhas da brisca ordenam cortar cabeças. 

E isso não pode ser. 

Leiamos este conto que é duro e ulcera e lastima. Devemos-lho. 


Marta Sanz: pequeñas mujeres rojas.

Anagrama 2020

Comentarios