Já ninguém bota o cereal em Tardade, por Susana Sanches Arins



O conto é sempre o mesmo. A filha pródiga que volta à casa. O prato de lentelhas a aguardar no mármore da cozinha. A reconciliação com a família e o passado. A sua revisão. 

Porém, não é o mesmo, porque o tempo é outro e é tardade. Branca não chega. Volta à aldeia só no funeral e já não é possível o encontro com a mãe (procurava esse encontro?) O caso é que Branca decide ficar e fazer horta e recorrer os espaços da aldeia e trabalhar on-line eler cartas velhas encontradas en velhas gavetas (sim, o conto é sempre o mesmo: manuscrito achado, estória oculta, explicação do eu). 

Lido no momento do (post-)confinamento provavelmente Tempo Tardade, de Raquel Miragaia, adquire outras significações que não foram pensadas pola autora na altura da escrita. Eu, na minha aldeia, a trabalhar on-line, a sachar o jardim nos tempos livres, lia a estória de Branca como a de um confinamento voluntário. Uma paragem, um stop, um parêntese vital para se afastar dos bruídos do mundo e se re-pensar. 

Mas não é Tempo Tardade uma fugida do mundanal ruído, o tópico do beatus ille (todo foi escrito já, sim) e a vida retirada. Porque na olhada da protagonista e da narradora estão tecidas da distância suficiente como para não cair no fascínio nem na idealização do rural. Todo o contrário. Pousa na obra uma funda reflexão sobre o atual abandono do rural galego e a responsabilidade que sobre isso tem(os) a geração de ‘80 e a dxs nossxs progenitorxs: “A nossa vida melhorada, pensei, matou a terra”. 

Em Tardade ficam as terras, abandonadas. Já não se bota o cereal (já não o há que apanhar sob o calor ardente), já não se criam vacas (já não as há que mungir todos os dias), já chegou a internet (já não restam vizinhas que a usem). Branca, sozinha na casa grande, testemunha, silenciosamente, essa queda. 

E ao tempo, com todo o tempo que tem, lê. Encontra as cartas do tio Serafim, irmão do avô, chegadas de Buenos Aires e sem cópia das respostas. Uma mensagem a meias. Contos de começos do século XX que ela sente como contos de finais do século XX, quando ela e o irmão foram embora estudar e nunca mais voltaram. Migrantes em paralelo na procura de um futuro melhor. A pergunta que paira por sobre a escrita: pagava a pena esse futuro? 

Tempo Tardade é também o tempo de quem fica. O tempo de Modesta, vizinha, sempre em Tardade, no lugar. Nunca migrada. O tempo da mãe, do avô da casa. Não se foram, são o fracasso, a conformidade. Quem não abandonou a terra. Fracasso, conformidade?

Mas sobre todo, Tempo Tardade é tempo de silêncio. O falar não tem cancelas e o calar deixa todas as portas abertas. Silenciosa é a relação de Branca com a mãe, Lola. Branca só a via como mãe, nunca como mulher. O confinamento, as conversas com Modesta, as cartas do Serafim, fam-na perceber não em relação com ela, mas com o mundo. Ainda que seja tarde (ai, a tardade), para uma conversa longa e calma. E o silêncio é também essa névoa que não se dissipa e não deixa perceber os objetos e verdades de fundo, a menos que conheças as chaves, os compasses, os mapas. Na leitura entre linhas, por trás dos silêncios e os brancos das páginas, nosoutras, percebemos. Sabemos por que Serafim não voltou e por que a amizade de Lola e Modesta foi por sempre. 

Branca sabe também. 


Raquel Miragaia: Tempo Tardade.

Através Editora 2020.



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