VII Día das Galegas nas Letras. Inma António. Roteiro





Para coñecermos mellor a Inma António, Susana S. Aríns guíanos polas rúas da Coruña descubríndonos a vida (imaxinaria) da Nosa Señora das Letras.


ROTEIRO IMAGINÁRIO E CORUNHENTO POLA VIDA E OBRA DE INMA ANTÓNIO SOUTO

texto Susana S. Aríns

PARADA 1: TEATRO Rosalía de Castro

Este é a rua Alfredo Vicenti. Estamos ás humildes portas da Sala Luis Seoane. Apenas 200 asentos. E toda a ambição que dá acreditar na possibilidade de um teatro profissional na Galiza. Neste espaço, pensado e nascido pola companhia teatral Luis Seoane, formou-se Inma António. Apareceu a caminhar do fundo da avenida, uma mulher que chega, terivelmente formosa, fresca. Ainda que já apontava maneiras no liceu, que bem o testemunham Pilar Pallarés e Pilar García Negro, foi cá que participou nos ateliers de interpretação, na vida da sala em quanto espaço pedagógico e onde se sentiu forte e valorada como para ousar escrever e publicar os seus primeiros textos1Condenada a medrar, como os silêncios, teve palavras para contar esta e muitas outras histórias. Ainda que por vezes isso lhe trouxesse algum desencontro amistoso: 

BER: Não gosto de ver a minha vida espetada num papel. Parece-me ruim o que fizeste. 
INMA: Parece-che ruim escrever a vida? … Não tinha melhores personagens que vosoutras. Todas juntas resultamos um quadro de desterro, frustração e decadência quase perfeito. Real como a vida mesma… só que está no papel… Quem sabe, Ber, quiçá algum dia uma atriz ainda mais fracassada do que todo isto dara-che vida no cenário… não resulta emocionante?
BER: Não. O retrato ficará incompleto. 
INMA: É que houvo alguma vez retratos completos? Olha-me a mim. Eu também não estou completa. Também resulto uma caricatura de todas as mulheres que fui2.


PARADA 2. Casa CASARES QUIROGA. Interior.

As atrizes, as dramaturgas, as cenógrafas, vivem habitualmente na precariedade. Sempre de alugueiro e sempre pendentes dos números encarnados na conta de aforro ordinário. Por isso é muito fácil ver atrizes, dramaturgas, cenógrafas, nas sucursais bancárias, a fazer fileira para solicitar um adiamento, rogar um adianto, suplicar paciência e compreensão. Por isso mesmo, também, é mui alta a probabilidade de atrizes, dramaturgas, cenógrafas, verem-se envoltas como testemunhas ou protagonistas em assaltos aos bancos. São as que sempre saem depois no informativo televisivo, bem dramáticas, como deve ser, a comentar a jogada, os pormenores, cada um dos movimentos dos homens com máscara e espingarda. 
Cá, nesta oficina da que não imos dizer o nome para não propagar comissões, viu a Inma António entrar um espectro com espingarda. Porém, as teatreiras são terríveis como testemunhas. Contam com o poder do corpo e palavra e podem revirar, ajudadas da imaginação, os feitos todos para deixar qualquer pretensão de julgamento em água borrageira.

INDRIG: Este tolo esteve toda a manhã retendo-nos aqui em quanto nos apontava com uma escopeta, e não penso permitir que ande solto por aí.
INMA: não me digas? Pois eu, o único que recordo é que estávamos aqui, na sucursal, tomando um café entre amigos… Alguém de vós viu algo que se assemelhasse nem de longe ao que conta esta forasteira?
VELHO ROQUE: Não, eu não vi tal.
INMA: perdoe, senhor Roque, mais vostede não conta.
VELHO ROQUE: e logo?
INMA: Seria difícil que o admitiram como testemunha num juízo.
HORTENSIA: Pois eu tam-pouco vi nada do que diz essa Falabarato.
INMA: Perdoa, Hortensia, mas ti és a irmã do suspeito. 
ISOLINA: pois eu tam-pouco o vi…
INMA: e ti tam-pouco, Isolina: estás a aguardar uma filha do acusado. 
(Olham-se umas a outras até centrarem as olhadas em dom Tomé)
DOM TOMÉ (logo de presignar-se): Que deus me perdoe e saiba compreender… Eu tam-pouco vi aqui nenhum atraco! Nada se passou aqui. Isto é todo teatro!!3

PARADA 3. PRAÇA DE ESPANHA. 

Uma das grandes diversões da Inma António juvenil era fugir pola janela da casa, saltar ao telhado do galpão, pendurar-se do cano da parede de leste e, com um pequeno chouto, acabar com os pés pousados no chão e ir dar uma volta noturna polos bairros da cidade. Adorava o absoluto silêncio, apenas a crepitação das folhas sob as suas pegadas, a sensual fragrância que havia na névoa a subir do mar. Quase sempre esses passeios eram secretos e solitários. Só algumas vezes se lhe juntavam a Sedna, o Tátio, o Brando ou o Ve, panda do liceu. Era com eles que também gostava de ir de acampada à montanha courelesa por expedicionar minas abandonadas, rastos do wolfran, o ouro dos romanos. 
Mas este é o lugar que nunca ensinou a ninguém. O espaço inesperado que acabou com as suas saídas noturnas e clandestinas: estades perante o ninho da ave da noite e os seus reflexos azulados. 

Inma avançou, avançou, até tropeçar em algo… colheu-no do chão, examinou-no… Quando descobriu o que aquilo era, ficou arrepiada: unha caveira humana, hamlet corunhenta. Estava já velha e munda, sorria-lhe com un aceno entre grosseiro e irónico desde o oco das suas mãos… Guindou-na longe… Seguiu avançando… Era como um grande cemitério de ossos bo chão, apinhando-se esqueletos humanos como restos de animais pequenos… Aqui, roupa lixada em sangue, aló: un corpo distorsionado… Frio e morte… porém, o lugar era mágico, envolto naquele recendo azul… 
Chegou a uma espécie de ninho gigante. Ficou completamente paralisada ao descobrir um fato de cadáveres que ainda não estavam comestos de todo… Carniça… Descobriu, entre uma massa sanguinolenta e miolos espalhados, o relógio de Brando… Sentia vascas, queria fugir… Achou-se pisando um líquido visgoso de origem duvidosa… Nojo e medo...4

PARADA 4. MERCADO DE SANTO AGOSTINHO.

Neste edifício, no segundo andar, situava-se o laboratório farmacéutico em que trabalhou Inma António entre os anos 2004 e 2005. Pagou o Master em Foniatria e Expresão Dramática que cursou na Universidade de Coimbra esfregando chãos, desinfetando provetas, higienizando funis de decantação. Foi neste emprego que conheceu Luz e Gabriel. Luz que não é anjo mas a científica modelo, lembras? Os científicos não têm assinhas. Vestem bata branca e são senhores muiserios... 
Mascarada na sua bata de limpadora, Inma espreitou os fazeres e desfazeres de Luz, as suas sombras. Os olhares encontrados entre ambas as batas mutaram em uma sororidade que anegou o laboratório e derrubou universos simbólicos. Inma escuitou Luz e deixou-a falar na sua escrita. E falou Luz,  desde si própria, do que lhe petou, do que lhe saiu de dentro e longe dos estereótipos
marcados. A sororidade, a amizade, o rejeitamento do capitalismo neoliberal, as mudanças para
encontrar o prazer, a diversidade...5

GABRIEL.- Algún día teriamos que quedar para tomar un café ou unha copa ou cear... Os tres,
quero dicir... É estraño que nestes anos nunca nos viramos fóra do traballo... Un día quedamos os
tres e...
INMA.- ¿Qué tres?
GABRIEL.- Ti e máis eu e... o teu mozo...
INMA.- ¿O meu mozo?
GABRIEL.- O teu mozo... ou o que sexa...
INMA.- Eu non tenño mozo.
(Gabriel dubida uns instantes)
GABRIEL.- ¿A túa moza?
INMA.- Non, tampouco moza.
GABRIEL(Xustificándose).- Non, como dixeches que non vivías soa... eu pensei que ti... xa me
entendes... que non vivías soa...
INMA (A rir).- Vivo con dous gatos, unha cadela e dous acuarios de trescentos litros cada un, onde
teño uns cantos peixes que son o pasatempo favorito de Fred.
GABRIEL.- ¿Fred?
INMA.- Un papagaio atorrante e adorable. 


PARADA 5REAL ACADEMIA GALEGA

Sempre há dias para a ira. Nom foram muitos, mas na memória de Inma António aparecem-se, espectros com aura, entre os muros desta casa. Cá trabalhou como criada, junto com a sua irmã Solange, para a Condesa Pánfila Iluminatta, de elegância rançosa e extravagante6Quando a senhora, pânfila, acodia à ópera ou às suas sessões de espiritismo com a sobrinha Maripili, Inma e Solange, Solange e Inma, faziam da alcova cenário, dos cortinados pano, das vestes da senhora, disfarce, e das suas maneiras condescendentes e egoístas, diálogo dramático. Punham o relógio, e as duas horas de ausência da Pânfila, senhora, viravam sessão gozosa teatral, drama shakespereano, sem barba, jogo de espelhos, satírico. É neste trabalho que aprendeu o controlo do tempo diegético. E da ira. 

SOLANGE: Retire-se. 
INMA: Para a servir, também, senhora. Volto à minha cozinha. Nela encontrarei as minhas luvas e o cheiro dos meus dentes. O arroto silencioso do vertedoiro. A senhora tem as suas flores e eu o meu vertedoiro. Sou a criada. A senhora, a senhora, isso sim, não pode me profanar. A senhora pagar-mo-á no paraiso se é necessário. Preferiria segui-la até aí antes que abandonar o meu ódio á porta. Ria um pouco, ria… (De súbito soa o despertador. INMA para. As duas mulheres achegam-se uma à outra, emocionadas, e escuitam coladas a uma à outra) Já?
SOLANGE: Tenhamos pressa. A senhora vai voltar. (Começa a desabotoar o vestido.) Ajuda-me. Acabou-se… e não pudeste chegar ao final. 
INMA: (ajudando-a. Com tom de tristeza). Sempre acontece o mesmo. E pola tua culpa. Nunca estás pronta a tempo. Nãopodo dar-che remate.
SOLANGE: Aquilo que nos quita tempo são os preparativos. Tem em conta que... 
INMA: (quita-lhe o vestido). Vigia a janela.
SOLANGE: Tem em conta que sim nos dá tempo. Dei corda ao despertador para que podamos guardá-lo todo. (Deixa-se cair cansa na butaca.)
INMA: Faz um tempo sofocante esta noite. O dia inteiro foi sofocante. 
SOLANGE: Sim
INMA: E mata-nos, Solange.7

PARADA 6. CASA CORNIDE. 

Inma António chegou ao teatro quando um bom grupo de autores pelejava por abandonar o amateurismo e profissionalizar a atividade cénica galega. Fez companhia com Luis Seoane no Noroeste do país e sempre teve claro que havia ser Livre na (es)cena, mesmo havendo às vezes Morcegos no teatro. Anda desde a década de 80 do século passado nesta peleja por dignificar o trabalho teatral. E não cansa, imparável, pois cá continua, a presidir a Academia Galega do Teatro. 
Como gestora cultural, administradora de dinheiros, responsável de produções, ademais de grandes doses de omeprazol e buscapina teve que botar mão, tantas vezes, dos golpes nas portas. Como nesta enorme entrada ao mundo das burocracias administrativas, ao labirinto de papeis e chaves 325 e instâncias a quem bem se componha e perguntas ao ar surdo, mudo, cego, das instituções: 
QUEM HÁ AÍ???

INMA: Quen hai aí? - preguntamos- coma nunha película de terror de serie B, sabendo que, a seguir, algo horrible pasará. Porque, claro, nas películas de terror de serie B á pregunta de "¿quen hai aí?" só contesta o asasino. Tamén nos noticiarios.
Arrepía preguntar, si. Mais seguimos preguntando: quen hai aí? O teatro porfía en saber quen hai nas entrañas da nosa humanidade, quen hai en nós mesmas na nosa soidade, quen hai na outredade que atopamos na sociedade da que formamos parte.(.../...) Pero porfiamos. Resistimos. Construímos sobre ruínas. Inventamos outros mundos, posibles e imposibles. Saltamos ao baleiro cun ancho sorriso. Resistimos. Porfiamos. Quen hai aí?: é o noso berro de batalla. A nosa declaración de amor máis sentida e murmurada: quen hai aí? Quen?
E xa son milleiros de anos repetindo a pregunta porque facela é necesario. Cada día, ao longo deses milleiros de anos. Necesario. Nós, as xentes do teatro, só mantemos acesa esa chama necesaria. Outras xentes foron as que a mantiveron para nós e son outras as que a manterán cando nós nin recordo sexamos. É a nosa responsabilidade8.

PARADA 7. CONVENTO DAS CLARISAS.

Quantas mulheres não viram no noviciado uma oportunidade para fugirem dos deveres femenís que a sociedade lhes impunha. Casadinhas com um deus invisível e inexistente livravam assim do homem violento, do amor não correspondido, do corpo abandonado em partos infinitos e maternidades loucas. Mesmo a Inma António caiu, coma o santo, nessa tentação. E cá, neste convento das servas pobres de jesus cristo quis ingressar para não sair mais. Durou-lhe a cousa um par de anos, os suficientes para ver-se livre da peste e experiente para a atual pandemia de coronavirus que vivemos. 

No outono de 1889 os ventos chegados de além mar trouxeram a peste a este velho convento, neste val entre montanhas, onde o vento ecoa, isolado de vozes e passos profanos. A novícia, Inma, avisada por espectros noturnos, salva-se do desastre agachada no soto: a divina clemência foi. Na abóveda da adega procurou a novícia um refúgio à desolação. Só ali o ar era limpo, respirável, só ali é possível ainda a ideia de pureza. E aguarda, entre garrafas de licor, as chuvas purificadoras, como nosoutras as aguardamos agora neste agostado verão e covidiano.
HILDEGARDA: Todo isto é como um sonho… Como sonhar desperta, ciente de um…
INMA: Nunca se sonha ciente, senhora abadessa, porque raras vezes cientes somos livres… Só no sonho e a bebedeira conseguimos essa sensação, pois ficamos longe do nosso pesado corpo e vagamos por outras dimensões mais largas que as quotidianas. 
HILDEGARDA: Que dimensões, novícia Inma?
INMA: As imaginárias. 
HILDEGARDA: As imaginárias? Que quer dizer isto? A imaginação era desprezada pola prelatura que me instruiu, por constituir uma perda de tempo nas sérias ocupações da alma humana… A imaginação? Acaso não deveria ser considerada como um vício que se permite a mente? Um pecado!
INMA: Os pecados pertencem a quem os inventou. 
HILDEGARDA: Acaso o sonho ou a bebedeira poderão substituir ao éxtase divino, o estado de graça logrado mediante a comunhão com deus?… Que é o que quer dizer, nivícia Inma? Toleou?
INMA: Não toleei, minha senhora abadessa. Estou morta e só as mortas possuem a sapiência dos deuses. 
HILDEGARDA: Os deuses? Deus é só um e é três, a santíssima trindade!
INMA: não lhe dê voltas ao assunto. Já de viva me tacharam de herege. Uma das mais grandes hereges que engendrou mulher9.
HILDEGARDA: E precoce. Bem precoce!

PARADA 8. RUELA das BERNARDAS. 

- Tão branquinha! Menina branquinha! - berrava um palerma neste Beco dos Ratos para riso feliz de Pilar Pallarés. Tão branquinha que era fácil se perder na branca e luminosa Lisboa, oculta entre o empedrado, raínha entre casinhas de xadrez a fazer o salto de cavalo da Ladra à Lapa, do Chiado ao Ressio, da Sé à avenida da Liberdade. Foi em Lisboa que Inma António conheceu Fausto, professor de foniatria e expressão dramática, sedutor e amigo do demo. Foi para Fausto que escreveu cartas de amor ridículas, como devem de ser as cartas de amor e qualquer palavra esdrúxula. E foi essa brancura de moça quase adolescente que o Fausto chuchou e levou consigo deixando uma coiraça escura em que madurou a atriz.

BER: Vai Fausto contigo para Lisboa?
INMA: Não o sei, é cousa dele… Mas há viagens que uma deve de fazer sozinha…
BER: Mas tu amas ao Fausto…
INMA: Claro, mas o amor não chega, já não…
BER: De que tens medo?
INMA: De mim… eu sou só um corpo, percebes? Um recipiente no centro ou num lado do universo… às vezes descubro-me sentindo com tal intensidade que tenho medo de que o corpo rebente, estoure em mil anaquinhos que caiam sobre a bosta… mas, se os anacos são de cortiça, que farei?… tenho medo de ser carne. O amor que Fausto me obriga já não mo atinge o pensamento, verque-se-me polas veias, foge-me polos poros… Já não me cabe, já não me cabe no corpo, percebes? Fez-se tão gigante e não sei que fazer com ele, de tão grande que me cai sobre estas mãos de nena. 
BER: por isso te vas?
INMA: Ber, o romantismo morreu10.

PARADA 9. CASA DE ROSALÍA DE CASTRO.

Esta é um dos paços melhor conservados da Galiza. Chegou um dia a ele uma nova senhora, com nome composto e traço entre os apelidos11. Tomou conta da casa e recuperou o esplendor que perdera após o abandono da última herdeira que foi Inma António. De Arcoa-Figueiroa, que sempre ocultou a segunda parte traçadiça na escolha de heterónimo artístico. As senhoritas não podem dar em atrizes, bem o sabia já Rosalia de Castro. Escolheu Inma para a fugida da decadência nobiliária uma noite de Sanjoão. Abandonou o val de Arcoa, berço de infância, fonte de saudades futuras, espectro sempre presente, e instalou-se na cidade que foi sua até já. Cá ficou o escudo, com o seu quartel em folhas de castanheiro, a ave da noite no quartel segundo, a pena de escrever no terceiro e a foucinha segadora no último. 
E acompanhando, cada dia, a morrinha da origem: 
INMA: Não esqueças da casa e do seu apelido… Ah, Arcoa, val que nunca meu serás, cemitério para a esmorecida nobreza dos avôs que só viram em ti um val cativo onde guardar o orgulho de uma idade que já foi, sem saber que só em ti tem gorida o infinito. Fai-se-me tarde, marcho já. Neinice, val gigante… Hoje será noite de vigília, lê-se no céu… lê-se também o indício de uma luz, a lua sereníssima que guardou os meus desacougos escuitará outra vez o ecoar do vento no val… mas eu não ficarei… E, se observamos bem, dirá-nos a bidueira do cabo do rio que do lado da montanha não chegará eco dos choros. Nem do lado da montanha, nem do fundo da fraga… Não, nenhum eco de choros...12

PARADA 10. PRAÇA DA FARINHA.

Como todas as meninhas da sua geração, Inma António teve aulas na escola de labores do lar. Ainda conserva o álbum em que dava mostra de quanto remendo e costura aprendeu: o ponto de cruz, o olho do botão, a baínha, as espigas, o direito e o revês, o ponto de arroz. Aprender para a casa, para dar a cuidadora perfeita da beba, do homem, das velhas. Porém, foi neste parque, onde aprendeu Inma António a subversão. É cá onde se juntava para aprender a ser feminista sem o saber, de maneira visceral, perante a maneira em que eram tratadas na vida13, com as amigas Matilde, Anxos, Elvira, Rebeca, Nanda e a Tía Davinia. Sentavam, sacavam dos sacos agulhas e fio, e juntas partilhavam, como em clube, o tecer e o tramar. É nesse dar-lhe as mãos para construir que puderam as amigas liberar as línguas para deconstruirem-se e para tomar as rédeas da própria vida. Nunca antes se viram seis mulheres a okupar a cena, a palavra, a foucinha. Não havia rapaz que ousasse sentar no seu recanto de sombra, de Luz.
INMA: Quando a força bruta tira comigo ao chão e me remexe a roupa, quando sinto a calor nojenta do seu bafo na cara, quando sinto que não podo mover-me, quando noto o tato de umas mãos nas bragas, quando ouço o meu próprio berro a se perder no campo, quando noto como me quebram por dentro, quando quero que a terra se abra e me trague para não sentir o abaneio destrutor dentro de mim mesma, quando noto uma labaçada, quando o alasar e os gemidos me parecem os bombardeios de uma guerra, quando noto que o peso se levanta, me cospe um puta e vai fora, daquela sei que não há liberdade. Que não podo decidir14.


2Adaptação livre de um fragmento de Como cartas a um amante
3Versão livre de um fragmento de Aforro Ordinario.
4Adaptação livre de um fragmento de Unha ave na noite.
6Dies Irae.
7Adaptação e tradução livre de um fragmento d’As criadas, de Jean Genet.
8Fragmento do Manifesto para o Día Mundial do Teatro 2017, escrito por Inma António.
9Versão livre de um fragmento de As augas mudas.
10Adaptação livre de um fragmento de Como cartas a um amante.
11Recém lera o conto de Emma Pedreira Lugares pechados, no Nós DIARIO 161, e tomei as formas...
12Adaptação livre de um fragmento de Como cartas a um amante.
14Versão livre de um fragmento d’O club da calceta, de María Reimóndez.

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