Aguilhão a se nos cravar nas tetas, por Susana S. Aríns



Quando a Através editou novamente o Scórpio, comprei, como subscritora fiel que sou, mas admito que sem lê-lo novamente.
Evito desde há tempo a re-leitura de autores que na primeira mocidade adorei. Evito-o por medo a dececionar-me. Formei-me completamente no cânone hegemónico-oficial e, mesmo a questionar-me muitas cousas, só me tornei plenamente consciente disso ao mergulhar no feminismo. As aprendizagens que este me ofereceu puseram de pernas para o ar muitas das minhas seguranças éticas e estéticas, virando totalmente o rumo das minhas escolhas literárias.
Mas chegou o Dia das Letras Galegas e ele é o meu patriarca reintegrata, seique, e disse: vou ler. Pouco lembrava do conteúdo do Scórpio. Na realidade, esquecera totalmente. Mas mantinha na memória a leitura gozosa, feliz, impactante. Temia reabrir o volume. E vou, desde já, admitir: tinha razões para isso.
Porque, no que respeita à imagem das mulheres, ao seu lugar na narrativa, à sua funcionalidade no desenvolvimento na trama, é impossível um romance ser mais canónico e hegemónico e oficial. E para mim foi já nem sequer gozoso, mas custoso de ler.

Scórpio desenvolve a sua trama entre os anos 1910 e 1938/9. Segue a vida do protagonista desde o nascimento até a morte e, na segunda parte da obra, aparece como pano de fundo o golpe fascista de 36 e a guerra. Já por isto muitas qualificam a obra de épica, de narrativa histórica, de romance de herói. E eu procurei isso nesta minha segunda leitura para dar com um folhetim, autêntica literatura rosa, pois o motor do textos deixam de ser as grandes decisões políticas ou os grandes momentos históricos para serem os amorios do protagonista. A intriga está em sabermos, descobrirmos, ou nem isso, quais e por que surgem as amantes de Rafael, se manterá o relacionamento com a Chéli, se lhe será infiel com a Cleo, se houve algo com a Eugénia.
Nomear é apropriar-se de algo. É certo que os protagonistas têm cadansua alcunha, Scórpio e Sagitário, mas os nomes escolhidos nunca anulam ou impedem os nomes próprios, Rafael Martínez Pinheiro e Jorge Bermúdez. As mulheres que aparecem na narrativa, fora as da intimidade ferrolã, têm todas nome escolhido polos protagonistas. De poucas delas chegamos a saber o nome próprio; da maioria, nunca. Damos com elas só através do olhar masculino e por isso mesmo só chegam a nós se capacitadas para seduzir ou gostar aos homens: Cleópatra, Helena, Afrodita, Salomé, Artemisa… nomes de claro valor simbólico sempre associado à beleza. Aquelas que pouco interessam aos homens fisicamente, nem nome têm: “Som duas madrilenas que estudárom juntas. Umha parece-me insignificante como mulher, ainda que demostra estar mui ao dia em matéria de poesia espanhola contemporânea. A outra é Artemisa. Nom lhe pugérom esse nome no baptismo, desde logo; mas eu designei-a com esse mitológico alcume antes de conhecer a sua identidade, e agora, quando falamos dela, alomeamo-la assi. Mesmo lho temos confessado a ela própria, e nom lhe pareceu mal, a julgar pola sua reacçom. É umha rapariga mui séria, mas nom adusta, e tam gentil e lançal que a mim me move a admiraçom, e me evoca a esbeltez divina da Diana Caçadora. No que diz respeito à inteligência é, evidentemente, a primeira entre todas as mulheres que ficam em pé, quero dizer que nom fôrom eliminadas do curso. Com diferença à sua companheira, amostra nas “trincas” umha implacável objetividade crítica que nom se embrulha em concessons corteses.” (pág. 147/148; itálicos meus).

Como indicamos antes, os nomes escolhidos polos protagonistas do romance para as mulheres que os acompanham têm um claro valor simbólico, tanto como transparente. As mulheres ferrolãs da vida de Scórpio fazem parte do mundo angelical. Aurélia, a mãe, e Chéli, a noiva/irmã eterna respondem a esse modelo ponto por ponto. Nengum pormenor foge do papel do recato abnegado, da sombra acompanhadora do herói da trama. O rol virginal da Chéli até fai duvidar todas as demais personagens se exerce realmente de namorada do protagonista1.
As demais, excluindo mãe e irmã, zás, mulheres diabólicas e/ou ideais. Belezas perfeitas, admiráveis, como a Artemisa. E mulheres más. Rafael Martínez Pinheiro está construído como personagem distinto e distante, de quem nunca sabemos se sente ou se os fatos que lhe acontecem na vida passam realmente por ele. Neste sentido, é-nos colocado como um homem que se deixa levar, que se deixa fazer. E aparecem aí as femmes fatale, para levar Scórpio por caminhos que ele nunca trilharia: “Nom há dúvida de que Eugénia foi a sedutora, e Scórpio, o seduzido. Esta mulher de vinte e três anos, tam misteriosa, e a quem o mesmo dia em que Cleo regressou inesperadamente, saudei eu na Porta Fageira, quando se dirigia à sua casa, e eu voltava de um passeio pola Ferradura, apresenta-se-me agora ao jeito de umha verdadeira mulher fatal, dessas sereias que o cinema nos fornece como umha sublimaçom entre diabólica e feérica da femineidade, para compensar-nos de algum jeito, aos pobres homens, aos pobres moços coma mim – das frustraçons eróticas que nos fostregam, entre a grosseira do amor mercenário e as reservas mexeriqueiras das nossas companheiras de status social2.” (pág. 34)

O papel que as mulheres têm na narrativa contrasta com o momento das mulheres no contexto social da época. Nas décadas de 20 e 30 do século XX a universidade galega começa a receber as primeiras estudantas. É a época da Residência de Senhoritas em Madrid e das chamadas “sinsombrero”, mulheres que, como Maruja Mallo, decidiram vestir seguindo novas modas e optaram por recusar-se a levar a cabeça coberta, insubmissas às normas sociais3.
A presença das mulheres na Universidade é refletida na obra, mas isto está longe de ir em paralelo com o seu rol na narrativa. Aparecem aí, nesse novo espaço conquistado, mas para o mesmo de sempre: dar prazer estético, sensual e sexual aos homens. Assim como os moços iam a Santiago para estudar, divertir-se, andar em literaturas e política, as moças só iam passear e procurar namorado. Nunca falam daquilo que aprendem nas sessões académicas, nunca opinam sobre política. Aparecem como simples comparsas da vida masculina.
No romance aparecem mais mulheres que as universitárias a relacionar-se com os protagonistas. Aparecem-se também mulheres das camadas populares e mulheres prostituídas, que nalguns casos acabam por ser as mesmas.
No tempo de estudantes os protagonistas visitam e galanteiam três raparigas, Susa, Rosa e Luzia4, das quais gozam até onde querem, mas que já desde o início aparecem responsabilizadas por esse relacionamento: “todas atirando ao fino, atirando aos estudantes, que temo que qualquer dia os artesaos do bairro nos dem um desgosto” (pág. 75). Mas eles põem-nas de parte quando deixam de convir-lhes e assim o recrimina Susa a Sagitário no capítulo XLII.
No frente de guerra a presença das mulheres é limitada às soldadeiras, assim conceptualmente percebidas. Mulheres que andam nesse mundo só para satisfazerem desejos e necessidades masculinas. Faz-se diferença de classe entre elas: as cortesãs, elegantes, mesmo distinguidas, e as hetairas, de rua: “Neste Madrid sitiado nom todo é guerra. Ainda há homens que se deitam com duas mulheres. O amor exercita-se livremente, as hetairas peripatéticas que se ofertavam ao viandante nas ruas que desembocam na Gran Vía, já actuam nesta sem temor à polícia. Nom as grandes e formosas e elegantes cortesás que frequentam os mais distinguidos cafés, como a minha vizinha do Negresco, senom as humildes trota-ruas que ontem se agachavam nas sombras, controladas ou contidas pola política urbanística e policial e o vago ideal republicano de aboliçom da prostituiçom.” (pág. 172). Pensemos que o protagonista é contemporâneo de Clara Campoamor e as suas luitas feministas.

Tratam como mulheres prostituídas aquelas que usam aproveitando-se das necessidades económicas delas, ao mesmo tempo que se autorrepresentam como benfeitores em vez de abusadores: “tem resolvidos os problemas da sua libido com o uso e desfrute de umha boa moça do país, umha viúva nova com dous filhos, a quem começou protegendo desinteressadamente, e que lhe agradece deste jeito a sua desinteressada protecçom” (pág. 233; itálicos meus). Mulheres vistas como campo de batalha, terreno, como o bélico, a conquistar e do que tomar posse, exceto se for a ideal ou a angelical: “Desejava e possuía outras mulheres, mas a amada só me inspirava ternura.” (pág. 232)

Durante a Guerra Civil espanhola as mulheres mobilizaram-se na defesa da República, sobretudo dentro das fileiras comunistas e anarquistas. Mas nestas mulheres pouco reparam as personagens, por só procurarem nelas objetos de desejo sexual. Vem-nas, mas sem dar-lhes importância. Contrasta assim como é mencionada a presença anónima delas nas manifestações com como é descrita em pormenor a presença das cortesãs de café: “Desde mui cedo começárom a afluir obreiros, numerosas mulheres, elementos das classes de tropa e muitos guardas do corpo de Guarda ao que pertencia o militar assassinado” (pág 155; itálicos meus). Vem-nas, mas tratam as suas ações de maneira paternalista, como neste trecho, único em todo o romance em que é utilizado o qualificativo de nenas: “Os cafés estám cheios. De quando em quando entram neles umhas moças que levam umha pancarta com letreiros e desenhos patrióticos, e representam umha espécie de apropósito excitando os homens a alistar-se para combater na frente. Nós, enfiados nos nossos uniformes e com o aspecto marcial de veteranos defensores de Madrid, permanecemos mui tranquilos nos nossos assentos, sorrindo talvez às rapazas que recitam os seus papéis. Mas alguns paisanos nom demasiado maduros sentem-se inquietos como aludidos pola representaçom, e aliviados quando as nenas, que som da CNT ou da UGT, ou da Uniom de Mulheres Antifascistas, se retiram ao fim para ir com a sua música a outra parte.” (pág. 208/209)

Tal e como está articulado o romance, é certo que toda a diégese gira em volta da figura de Rafael Martínez Pinheiro, Scórpio. Os capítulos consistem na realidade em depoimentos de personagens diversas que ou foram testemunhas de factos que afetam a vida dele ou opinam sobre o seu carácter e forma de ser. Porém, há espaço para outras narrativas: as palestras universitárias, os planos de futuro dos estudantes, as intrigas políticas, a vida cultural. E mesmo assim, quando aparecem depoimentos femininos reduzem-se ao único aspeto do atrativo do protagonista e a vida sentimental e sexual dele5. Neste sentido o romance mal supera o popular (e simples, se bem que significativo) teste de Bechdel.

As mulheres tomam a voz poucas vezes. Porém, devemos ser cuidadosas na leitura. A aparente polifonia do romance é isso, aparência. Na realidade é a voz autorial a governar todos os depoimentos, o Salgueiro, que é quem está, de dentro, a construir a narrativa. As personagens carecem de vozes próprias, mas as que ele imagina que teriam: “Essa mulher que fala, nom fala exactamente como o faria umha mulher real da sua condiçom” (pág 60). E tanto! Isto faz com que as vezes que ouvimos as personagens femininas atendamos a vozes tingidas de androcentrismo. Mulheres a ver o mundo como o olharia um homem. Na realidade, mulheres a olharem-se a si próprias como um homem o faria. Como o Salgueiro faz.
O capítulo LX, em que fala Helena, é boa mostra disso. Começa assim: “As minhas medidas som: colo 35, costas 34, tórax 84, cintura 60, quadris 90, talha 1,65. tenho dezanove anos, estudo terceiro de carreira. // Como som? Bem, no párrafo anterior já se diz como sou” (pág 106). Helena exerce como Narcisa a admirar-se no espelho, e duvidamos se é ela realmente a narrar-se ou um Salgueiro que está a espiar polo furado da fechadura. Admite ser boa estudante e com qualidades intelectuais, mas todo o capítulo é um descer detalhado polo seu corpo e a capacidade deste para seduzir homens: “O meu perfil é bastante grego. Seria de umha seriedade algo académica se os meus olhos e a minha boca nom fossem como som. Aqueles, dous meninhos escachapedras; esta umha rosa de especioso sorriso escarlata. Mas a minha cabeça é sólida sobre um colo de alabastro. E como que ainda estou perante o espelho, estou vestida -nom som umha perversa voluptuosa-, nom podo descrever muito mais da minha pessoa, embora o azougue registe um busto alto, breve e agudo, e uns estreitos, mas alegres quadris” (pág. 109; itálicos meus).

Outro momento da narrativa destacável neste sentido é aquele dedicado à Cleo/Júlia e às suas pernas. Enquanto o lia pensava que o direitor do filme Instinto Básico tinha lido o Scórpio. Novamente a mulher como objeto de desejo masculino e outra vez ela a ver-se a si mesma gozada de homens, como se para todas as mulheres fosse esse o objetivo (capítulo XLI).

O mais significativo para mim, é pensar que este é um romance de maturidade, uma obra na que o autor reflexiona criticamente sobre os fatos históricos, tão marcantes, vividos na sua mocidade (república, galeguismo, golpe de estado, guerra, repressão…) com a perspetiva dos anos passados e acontecimentos posteriores. Deita uma olhada crítica sobre aqueles anos e o labor dele e os companheiros nesse tempo. E não cabe, nesse olhar crepuscular nem a primeira reflexão crítica sobre o lugar outorgado à mulheres, sobre as mudanças nessas décadas, sobre o desprezo que manifestam esses moços para elas. Porque é uma reflexão ausente da sua vida. Como em tantos senhores.
Enfim, o romance Scórpio representa bem a literatura canónica masculina. Combina todos os recursos que tem na sua mão para invisibilizar as mulheres como protagonistas, reduzi-las a tópicos, negar-lhes a voz e conceptualizá-las como simples objetos de desejo e meios para satisfazer necessidades sexuais masculinas.

Ricardo Carvalho Calero: Scorpio,
Através editora


1O capítulo LXIX da primeira parte, em que é narrado o dia do casamento, é boa mostra desta imagem da Chéli.
2Veja-se como é naturalizado o recurso a prostitutas como atividade “natural” entre os homens.
3“E tanto que é mostra de rebeldia: Também é negra a sua melena, que, infelizmente, usa, como todas as mulheres hoje, cortada à la garçon. Como lim nuns versos publicados en Blanco y Negro, creio que de Cristóbal de Castro: Tu, entre todas, las del día / con melena a la garzón, / eres la anfibología / andrógina de Platón.” (pág. 29)
4A mais nova de só quinze anos.

5Poucas vezes as mulheres fornecem informações para além do plano sentimental, autenticamente políticas, mas elas vêm referidas indiretamente, por exemplo através de Barreiro: “Um tio de Artemisa é tenente coronel da Guardia Civil, e a nossa companheira sabe por ele mais do que dim os jornais.” (pág. 153)   

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