Quando a Através editou
novamente o Scórpio, comprei, como subscritora fiel que sou,
mas admito que sem lê-lo novamente.
Evito desde há tempo a
re-leitura de autores que na primeira mocidade adorei. Evito-o por
medo a dececionar-me. Formei-me completamente no cânone
hegemónico-oficial e, mesmo a questionar-me muitas cousas, só me
tornei plenamente consciente disso ao mergulhar no feminismo. As
aprendizagens que este me ofereceu puseram de pernas para o ar muitas
das minhas seguranças éticas e estéticas, virando totalmente o
rumo das minhas escolhas literárias.
Mas chegou o Dia
das Letras Galegas e
ele é o meu patriarca reintegrata, seique, e disse: vou ler. Pouco
lembrava do conteúdo do Scórpio.
Na realidade, esquecera totalmente. Mas mantinha na memória a
leitura gozosa, feliz, impactante. Temia reabrir o volume. E vou,
desde já, admitir: tinha razões para isso.
Porque, no que respeita à imagem das mulheres, ao seu lugar na
narrativa, à sua funcionalidade no desenvolvimento na trama, é
impossível um romance ser mais canónico e hegemónico e oficial. E
para mim foi já
nem sequer
gozoso, mas custoso de ler.
Scórpio desenvolve a sua trama entre os anos 1910 e 1938/9.
Segue a vida do protagonista desde o nascimento até a morte e, na
segunda parte da obra, aparece como pano de fundo o golpe fascista de
36 e a guerra. Já por isto muitas qualificam a obra de épica, de
narrativa histórica, de romance de herói. E eu procurei isso nesta
minha segunda leitura para dar com um folhetim, autêntica literatura
rosa, pois o motor do textos deixam de ser as grandes decisões
políticas ou os grandes momentos históricos para serem os amorios
do protagonista. A intriga está em sabermos, descobrirmos, ou nem
isso, quais e por que surgem as amantes de Rafael, se manterá o
relacionamento com a Chéli, se lhe será infiel com a Cleo, se houve
algo com a Eugénia.
Nomear é apropriar-se de algo. É certo que os protagonistas têm
cadansua alcunha, Scórpio e Sagitário, mas os nomes escolhidos
nunca anulam ou impedem os nomes próprios, Rafael Martínez Pinheiro
e Jorge Bermúdez. As mulheres que aparecem na narrativa, fora as da
intimidade ferrolã, têm todas nome escolhido polos protagonistas.
De poucas delas chegamos a saber o nome próprio; da maioria, nunca.
Damos com elas só através do olhar masculino e por isso mesmo só
chegam a nós se capacitadas para seduzir ou gostar aos homens:
Cleópatra, Helena, Afrodita, Salomé, Artemisa… nomes de claro
valor simbólico sempre associado à beleza. Aquelas que pouco
interessam aos homens fisicamente, nem nome têm: “Som
duas madrilenas que estudárom juntas. Umha
parece-me insignificante como mulher,
ainda que demostra estar mui ao dia em matéria de poesia espanhola
contemporânea. A
outra é Artemisa.
Nom lhe pugérom esse nome no baptismo, desde logo; mas eu designei-a
com esse mitológico alcume antes de conhecer a sua identidade, e
agora, quando falamos dela, alomeamo-la assi. Mesmo lho temos
confessado a ela própria, e nom lhe pareceu mal, a julgar pola sua
reacçom. É umha rapariga mui séria, mas nom adusta, e tam gentil e
lançal que a mim me move a admiraçom, e me evoca a esbeltez divina
da Diana Caçadora. No que diz respeito à inteligência é,
evidentemente, a primeira entre todas as mulheres que ficam em pé,
quero dizer que nom fôrom eliminadas do curso. Com
diferença à sua companheira,
amostra nas “trincas” umha implacável objetividade crítica que
nom se embrulha em concessons corteses.” (pág. 147/148; itálicos
meus).
Como indicamos antes, os nomes escolhidos polos protagonistas do
romance para as mulheres que os acompanham têm um claro valor
simbólico, tanto como transparente. As mulheres ferrolãs da vida de
Scórpio fazem parte do mundo angelical. Aurélia, a mãe, e Chéli,
a noiva/irmã eterna respondem a esse modelo ponto por ponto. Nengum
pormenor foge do papel do recato abnegado, da sombra acompanhadora do
herói da trama. O rol virginal da Chéli até fai duvidar todas as
demais personagens se exerce realmente de namorada do protagonista1.
As demais, excluindo mãe e irmã, zás, mulheres diabólicas e/ou
ideais. Belezas perfeitas, admiráveis, como a Artemisa. E mulheres
más. Rafael Martínez Pinheiro está construído como personagem
distinto e distante, de quem nunca sabemos se sente ou se os fatos
que lhe acontecem na vida passam realmente por ele. Neste sentido,
é-nos colocado como um homem que se deixa levar, que se deixa fazer.
E aparecem aí as femmes fatale, para levar Scórpio por caminhos que
ele nunca trilharia: “Nom
há dúvida de que Eugénia foi a sedutora, e Scórpio, o seduzido.
Esta mulher de vinte e três anos, tam misteriosa, e a quem o mesmo
dia em que Cleo regressou inesperadamente, saudei eu na Porta
Fageira, quando se dirigia à sua casa, e eu voltava de um passeio
pola Ferradura, apresenta-se-me agora ao jeito de umha verdadeira
mulher fatal, dessas sereias que o cinema nos fornece como umha
sublimaçom entre diabólica e feérica da femineidade, para
compensar-nos de algum jeito, aos pobres homens, aos pobres moços
coma mim – das frustraçons eróticas que nos fostregam, entre a
grosseira do amor mercenário e as reservas mexeriqueiras das nossas
companheiras de status
social2.”
(pág. 34)
O papel que as mulheres têm na narrativa contrasta com o momento das
mulheres no contexto social da época. Nas décadas de 20 e 30 do
século XX a universidade galega começa a receber as primeiras
estudantas. É a época da Residência de Senhoritas em Madrid e das
chamadas “sinsombrero”, mulheres que, como Maruja Mallo,
decidiram vestir seguindo novas modas e optaram por recusar-se a
levar a cabeça coberta, insubmissas às normas sociais3.
A presença das mulheres na Universidade é refletida na obra, mas
isto está longe de ir em paralelo com o seu rol na narrativa.
Aparecem aí, nesse novo espaço conquistado, mas para o mesmo de
sempre: dar prazer estético, sensual e sexual aos homens. Assim como
os moços iam a Santiago para estudar, divertir-se, andar em
literaturas e política, as moças só iam passear e procurar
namorado. Nunca falam daquilo que aprendem nas sessões académicas,
nunca opinam sobre política. Aparecem como simples comparsas da vida
masculina.
No romance aparecem mais mulheres que as universitárias a
relacionar-se com os protagonistas. Aparecem-se também mulheres das
camadas populares e mulheres prostituídas, que nalguns casos acabam
por ser as mesmas.
No tempo de estudantes os protagonistas visitam e galanteiam três
raparigas, Susa, Rosa e Luzia4,
das quais gozam até onde querem, mas que já desde o início
aparecem responsabilizadas por esse relacionamento: “todas
atirando ao fino, atirando aos estudantes, que temo que qualquer dia
os artesaos do bairro nos dem um desgosto” (pág.
75). Mas eles põem-nas de parte quando deixam de convir-lhes e assim
o recrimina Susa a Sagitário no capítulo XLII.
No frente de guerra a presença das mulheres é limitada às
soldadeiras, assim conceptualmente percebidas. Mulheres que andam
nesse mundo só para satisfazerem desejos e necessidades masculinas.
Faz-se diferença de classe entre elas: as cortesãs, elegantes,
mesmo distinguidas, e as hetairas, de rua: “Neste
Madrid sitiado nom todo é guerra. Ainda há homens que se deitam com
duas mulheres. O amor exercita-se livremente, as hetairas
peripatéticas que se ofertavam ao viandante nas ruas que desembocam
na Gran Vía, já actuam nesta sem temor à polícia. Nom as grandes
e formosas e elegantes cortesás que frequentam os mais distinguidos
cafés, como a minha vizinha do Negresco,
senom as humildes trota-ruas que ontem se agachavam nas sombras,
controladas ou contidas pola política urbanística e policial e o
vago ideal republicano de aboliçom da prostituiçom.” (pág.
172). Pensemos que o protagonista é contemporâneo de Clara
Campoamor e as suas luitas feministas.
Tratam como mulheres prostituídas aquelas que usam aproveitando-se
das necessidades económicas delas, ao mesmo tempo que se
autorrepresentam como benfeitores em vez de abusadores: “…tem
resolvidos os problemas da sua libido com o uso e desfrute de umha
boa moça do país,
umha viúva nova com dous filhos, a quem começou protegendo
desinteressadamente, e que lhe agradece deste jeito a sua
desinteressada protecçom” (pág. 233; itálicos
meus). Mulheres vistas como campo de batalha, terreno, como o bélico,
a conquistar e do que tomar posse, exceto se for a ideal ou a
angelical: “Desejava
e possuía outras mulheres, mas a amada só me inspirava ternura.”
(pág. 232)
Durante a Guerra Civil espanhola as mulheres mobilizaram-se na defesa
da República, sobretudo dentro das fileiras comunistas e
anarquistas. Mas nestas mulheres pouco reparam as personagens, por só
procurarem nelas objetos de desejo sexual. Vem-nas, mas sem dar-lhes
importância. Contrasta assim como é mencionada a presença anónima
delas nas manifestações com como é descrita em pormenor a presença
das cortesãs de café: “Desde
mui cedo começárom a afluir obreiros, numerosas
mulheres,
elementos das classes de tropa e muitos guardas do corpo de Guarda ao
que pertencia o militar assassinado” (pág 155;
itálicos meus). Vem-nas, mas tratam as suas ações de maneira
paternalista, como neste trecho, único em todo o romance em que é
utilizado o qualificativo de nenas: “Os
cafés estám cheios. De quando em quando entram neles umhas moças
que levam umha pancarta com letreiros e desenhos patrióticos, e
representam umha espécie de apropósito excitando os homens a
alistar-se para combater na frente. Nós, enfiados nos nossos
uniformes e com o aspecto marcial de veteranos defensores de Madrid,
permanecemos mui tranquilos nos nossos assentos, sorrindo talvez às
rapazas que recitam os seus papéis. Mas alguns paisanos nom
demasiado maduros sentem-se inquietos como aludidos pola
representaçom, e aliviados quando as nenas, que som da CNT ou da
UGT, ou da Uniom de Mulheres Antifascistas, se retiram ao fim para ir
com a sua música a outra parte.” (pág. 208/209)
Tal e como está articulado o romance, é certo que toda a diégese
gira em volta da figura de Rafael Martínez Pinheiro, Scórpio. Os
capítulos consistem na realidade em depoimentos de personagens
diversas que ou foram testemunhas de factos que afetam a vida dele ou
opinam sobre o seu carácter e forma de ser. Porém, há espaço para
outras narrativas: as palestras universitárias, os planos de futuro
dos estudantes, as intrigas políticas, a vida cultural. E mesmo
assim, quando aparecem depoimentos femininos reduzem-se ao único
aspeto do atrativo do
protagonista e a vida sentimental e sexual dele5.
Neste sentido o romance mal supera o popular (e simples, se bem que
significativo) teste de Bechdel.
As mulheres tomam a voz poucas vezes. Porém, devemos ser cuidadosas
na leitura. A aparente polifonia do romance é isso, aparência. Na
realidade é a voz autorial a governar todos os depoimentos, o
Salgueiro, que é quem está, de dentro, a construir a narrativa. As
personagens carecem de vozes próprias, mas as que ele imagina que
teriam: “Essa mulher que
fala, nom fala exactamente como o faria umha mulher real da sua
condiçom” (pág 60). E tanto! Isto faz com que as vezes
que ouvimos as personagens femininas atendamos a vozes tingidas de
androcentrismo. Mulheres a ver o mundo como o olharia um homem. Na
realidade, mulheres a olharem-se a si próprias como um homem o
faria. Como o Salgueiro faz.
O capítulo LX, em que fala Helena, é boa mostra disso. Começa
assim: “As minhas medidas
som: colo 35, costas 34, tórax 84, cintura 60, quadris 90, talha
1,65. tenho dezanove anos, estudo terceiro de carreira. // Como som?
Bem, no párrafo anterior já se diz como sou” (pág 106).
Helena exerce como Narcisa a admirar-se no espelho, e duvidamos se é
ela realmente a narrar-se ou um Salgueiro que está a espiar polo
furado da fechadura. Admite ser boa estudante e com qualidades
intelectuais, mas todo o capítulo é um descer detalhado polo seu
corpo e a capacidade deste para seduzir homens: “O
meu perfil é bastante grego. Seria
de umha seriedade algo académica se os meus olhos e a minha boca nom
fossem como som. Aqueles, dous meninhos escachapedras; esta umha rosa
de especioso sorriso escarlata. Mas a minha cabeça é sólida sobre
um colo de alabastro. E como que ainda estou perante o espelho, estou
vestida -nom som umha perversa voluptuosa-, nom
podo descrever muito mais da minha pessoa,
embora o azougue registe um busto alto, breve e agudo, e uns
estreitos, mas alegres quadris” (pág. 109; itálicos
meus).
Outro momento da narrativa destacável neste sentido é aquele
dedicado à Cleo/Júlia e às suas pernas. Enquanto o lia pensava que
o direitor do filme Instinto Básico tinha lido o Scórpio.
Novamente a mulher como objeto de desejo masculino e outra vez ela a
ver-se a si mesma gozada de homens, como se para todas as mulheres
fosse esse o objetivo (capítulo XLI).
O mais significativo para mim, é pensar que este é um romance de
maturidade, uma obra na que o autor reflexiona criticamente sobre os
fatos históricos, tão marcantes, vividos na sua mocidade
(república, galeguismo, golpe de estado, guerra, repressão…) com
a perspetiva dos anos passados e acontecimentos posteriores. Deita
uma olhada crítica sobre aqueles anos e o labor dele e os
companheiros nesse tempo. E não cabe, nesse olhar crepuscular nem a
primeira reflexão crítica sobre o lugar outorgado à mulheres,
sobre as mudanças nessas décadas, sobre o desprezo que manifestam
esses moços para elas. Porque é uma reflexão ausente da sua vida.
Como em tantos senhores.
Enfim, o romance Scórpio representa bem a literatura canónica
masculina. Combina todos os recursos que tem na sua mão para
invisibilizar as mulheres como protagonistas, reduzi-las a tópicos,
negar-lhes a voz e conceptualizá-las como simples objetos de desejo
e meios para satisfazer necessidades sexuais masculinas.
Ricardo Carvalho Calero: Scorpio,
Através editora
1O
capítulo LXIX da primeira parte, em que é narrado o dia do
casamento, é boa mostra desta imagem da Chéli.
2Veja-se
como é naturalizado o recurso a prostitutas como atividade
“natural” entre os homens.
3“E
tanto que é mostra de rebeldia: Também
é negra a sua melena, que, infelizmente, usa, como todas as
mulheres hoje, cortada
à la garçon.
Como lim nuns versos publicados en Blanco
y Negro,
creio que de Cristóbal de Castro: Tu, entre todas, las del día /
con melena a la garzón, / eres la anfibología / andrógina de
Platón.” (pág. 29)
4A
mais nova de só quinze anos.
5Poucas
vezes as mulheres fornecem informações para além do plano
sentimental, autenticamente políticas, mas elas vêm referidas
indiretamente, por exemplo através de Barreiro: “Um
tio de Artemisa é tenente coronel da Guardia Civil, e a nossa
companheira sabe por ele mais do que dim os jornais.” (pág.
153)
Aguilhão a se nos cravar nas tetas, por Susana S. Aríns
Reviewed by segadoras
on
10:07:00
Rating:

Ningún comentario: