Silêncio que cicatriza, por Susana S. Arins


Admito que a cada dia são para mim mais aborrecedoras as narrativas com protagonista masculino. Acho que por cansaço. Após uma vida leitora na que eles ocuparam o espaço todo, em leituras obrigadas e acessíveis, ler uma outra vez o mundo visto da ótica de um senhor faz com que abandone a obra por tédio.
E começo o Hotel Silêncio, de Auður Ava Ólafsdóttir e dou com um homem Jónas, que anda na casa dos cinquenta e está divorciado e a vida não val nada e anda com a ideia de se suicidar. E penso para mim, ai, Auður, por quê, outro senhor, por quê. Mas como adoro a maneira de escrever desta autora, e como constrói as personagens e como fia as tramas tão poeticamente, mesmo havendo um protagonista que me deita fora da leitura, continuo. E continuo. E vou ficando apanhada, e já não saio fora e mergulho e passam as horas e dou cabo do romance e fico estonteada com a força desta autora, com a solidez das suas propostas e com a sua capacidade para nos levar aonde ela quer, mesmo sem termos muita vontade de acompanhá-la.
Já disemos, Jónas Ebeneser está sozinho e canso da vida e decide suicidar-se. Primeiro pede a espingarda ao vizinho, mas depois cai na conta de que pode ser a filha quem encontre o cadáver e isso não pode ser. Ele não quer incomodar. Ele, e isso aprenderemos com a leitura, é um home bom. E como não quer incomodar, antes de se suicidar arruma a casa e o quarto dos trastes. E como não quer incomodar, decide viajar ao estrangeiro para que a filha e a ex-mulher não passem trabalhos e só recebam um cadaleito e um atestado de óbito e já. O acordo do doce suicídio em grupo de Arto Paasilinna vem à cabeça. Essa procura do lugar certo para pôr fim à própria vida. Esse prolongar a vida um pouco mais porque a decisão está tomada. O Jónas decide deslocar-se a um país recém saído da guerra, com a vã esperança de que uma mina anti-pessoa ou um franco-tirador despistado lhe poupe o trabalho da gillete, do nó corrediço, das pílulas.
E chega ao Hotel Silêncio e aí dá de fronte com as feridas da guerra, ainda abertas, ainda a cicatrizar. Ele tem sete cicatrizes1. Uma recém coberta com a tatuagem de um nenúfar. Nada a ver com as de May, Fifi e Adam, as pessoas responsáveis do hotel, vítimas e sobreviventes de um genocídio.
Porque o Jónas é o chibo expiatório que a autora utiliza para nos contar outra cousa. A medida que leio entendo que quis trabalhar com o tópico boreal do homem suicida para mostrar-nos através dele as cicatrizes que lhe interessam. A primeira cicatriz de que fala o protagonista é a do umbigo. A cicatriz original. E acho que esta escolha não é gratuita2. Jónas a representar o centro do mundo. Nós na nossa individualidade e com as nossas inseguridades nascidas da seguridade. O encontro com May e Adam, a sua criança, faz com esse umbigo se desfigure e deixe de ser o centro de atenção.
O que adorei na proposta é a sensibilidade e o tato com que são tratadas todas as personagens da narrativa. Confrontadas com a situação das sobreviventes da guerra, as preocupações de Jónas podem parecer ridículas, mas nunca são consideradas assim. Já o dizia a mãe: todos os sofrimentos são únicos e diferentes, portanto, não podemos compará-los uns com os outros. Só acompanhá-los.
E justamente o que faz Jónas é acompanhar May e Adam no seu sofrimento. Aquilo que na sua vida quotidiana islandesa parecia defeito, vira virtude: o silêncio, a aparente incapacidade para dar conversa, permite a May e Adam gerir a sua dor com a calma que precisam, sem serem exigidas a desfiar-se em confissões invasivas perante ele. Essa mesma atitude toma a narradora/autora: o silêncio, o oco na narrativa, é suficiente para transmitir-nos o horror dos crimes de guerra. Crimes onde as mulheres são as principais destinatárias.
Jónas representa um padrão de homem diferente do habitual em narrativas várias. Aqui todos os homens mataram, diz-lhe May. Ele não. Outros tipos chegam ao país3 para aproveitarem a ruína e a destruição, para fazerem negócio da desgraça, como antes fizeram na guerra. Ele não. Ele chega e sabe e age e ajuda. O culpado é aquele que sabe e não faz nada, opina. E quiçá porque leio este romance em plena quarentena, caio na conta de que ajuda desde o insignificante, o pouco valorado, o aparentemente prescindível: só tem manha para consertar cousas, para arranjar portas que não fecham, canos que não levam água, lâmpadas que não acendem. O imprescindível quando todo falha. É desde aí, desde o pequeno, que contribui a cicatrizar as feridas. As próprias e as coletivas.


Auður Ava Ólafsdóttir: Hotel Silêncio
Tradução de José Vieira Lima. Quetzal Editores 2019.

1O título original da obra, em islandês é ör. E assim o explica a autora: Não é feminina nem masculina, mas de gênero neutro. Ör é idêntica no singular e no plural: uma ou várias cicatrizes. O termo aplica-se ao corpo humano, mas também a um país ou a uma paisagem destroçados por uma guerra ou pola construção de uma barragem (pág. 197).
2Bom, acho que nada é gratuíto neste romance.
3Nunca sabemos que país é, mas tanto tem.

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