Admito que a cada dia são para mim mais aborrecedoras as narrativas
com protagonista masculino. Acho que por cansaço. Após uma vida
leitora na que eles ocuparam o espaço todo, em leituras obrigadas e
acessíveis, ler uma outra vez o mundo visto da ótica de um senhor
faz com que abandone a obra por tédio.
E começo o Hotel
Silêncio, de Auður
Ava Ólafsdóttir e dou com um homem Jónas, que anda na casa dos
cinquenta e está divorciado e a vida não val nada e anda com a
ideia de se suicidar. E penso para mim, ai, Auður, por quê, outro
senhor, por quê. Mas como adoro a maneira de escrever desta autora,
e como constrói as personagens e como fia as tramas tão
poeticamente, mesmo havendo um protagonista que me deita fora da
leitura, continuo. E continuo. E vou ficando apanhada, e já não
saio fora e mergulho e passam as horas e dou cabo do romance e fico
estonteada com a força desta autora, com a solidez das suas
propostas e com a sua capacidade para nos levar aonde ela quer, mesmo
sem termos muita vontade de acompanhá-la.
Já disemos,
Jónas Ebeneser está sozinho e canso da vida e decide suicidar-se.
Primeiro pede a espingarda ao vizinho, mas depois cai na conta de que
pode ser a filha quem encontre o cadáver e isso não pode ser. Ele
não quer incomodar. Ele, e isso aprenderemos com a leitura, é um
home bom. E como não quer incomodar, antes de se suicidar arruma a
casa e o quarto dos trastes. E como não quer incomodar, decide
viajar ao estrangeiro para que a filha e a ex-mulher não passem
trabalhos e só recebam um cadaleito e um atestado de óbito e já. O
acordo do doce suicídio em grupo de Arto Paasilinna vem à cabeça.
Essa procura do lugar certo para pôr fim à própria vida. Esse
prolongar a vida um pouco mais porque a decisão está tomada. O
Jónas decide deslocar-se a um país recém saído da guerra, com a
vã esperança de que uma mina anti-pessoa ou um franco-tirador
despistado lhe poupe o trabalho da gillete, do nó corrediço, das
pílulas.
E chega ao
Hotel Silêncio e aí dá de fronte com as feridas da guerra, ainda
abertas, ainda a cicatrizar. Ele tem sete cicatrizes1.
Uma recém coberta com a tatuagem de um nenúfar. Nada a ver com as
de May, Fifi e Adam, as pessoas responsáveis do hotel, vítimas e
sobreviventes de um genocídio.
Porque o
Jónas é o chibo expiatório que a autora utiliza para nos contar
outra cousa. A medida que leio entendo que quis trabalhar com o
tópico boreal do homem suicida para mostrar-nos através dele as
cicatrizes que lhe interessam. A primeira cicatriz de que fala o
protagonista é a do umbigo. A cicatriz original. E acho que esta
escolha não é gratuita2.
Jónas a representar o centro do mundo. Nós na nossa individualidade
e com as nossas inseguridades nascidas da seguridade. O encontro com
May e Adam, a sua criança, faz com esse umbigo se desfigure e deixe
de ser o centro de atenção.
O
que adorei na proposta é a sensibilidade e o tato com que são
tratadas todas as personagens da narrativa. Confrontadas com a
situação das sobreviventes da guerra, as preocupações de Jónas
podem parecer ridículas, mas nunca são consideradas assim. Já o
dizia a mãe: todos os sofrimentos são únicos e diferentes,
portanto, não podemos compará-los uns com os outros. Só
acompanhá-los.
E justamente
o que faz Jónas é acompanhar May e Adam no seu sofrimento. Aquilo
que na sua vida quotidiana islandesa parecia defeito, vira virtude: o
silêncio, a aparente incapacidade para dar conversa, permite a May e
Adam gerir a sua dor com a calma que precisam, sem serem exigidas a
desfiar-se em confissões invasivas perante ele. Essa mesma atitude
toma a narradora/autora: o silêncio, o oco na narrativa, é
suficiente para transmitir-nos o horror dos crimes de guerra. Crimes
onde as mulheres são as principais destinatárias.
Jónas
representa um padrão de homem diferente do habitual em narrativas
várias. Aqui todos os homens mataram, diz-lhe May. Ele não. Outros
tipos chegam ao país3
para aproveitarem a ruína e a destruição, para fazerem negócio da
desgraça, como antes fizeram na guerra. Ele não. Ele chega e sabe e
age e ajuda. O culpado é aquele que sabe e não faz nada, opina. E
quiçá porque leio este romance em plena quarentena, caio na conta
de que ajuda desde o insignificante, o pouco valorado, o
aparentemente prescindível: só tem manha para consertar cousas,
para arranjar portas que não fecham, canos que não levam água,
lâmpadas que não acendem. O imprescindível quando todo falha. É
desde aí, desde o pequeno, que contribui a cicatrizar as feridas. As
próprias e as coletivas.
Auður Ava
Ólafsdóttir: Hotel
Silêncio
Tradução de
José Vieira Lima. Quetzal Editores 2019.
1O
título original da obra, em islandês é ör. E assim o explica a
autora: Não é feminina nem masculina, mas de gênero neutro. Ör
é idêntica no singular e no plural: uma ou várias cicatrizes. O
termo aplica-se ao corpo humano, mas também a um país ou a uma
paisagem destroçados por uma guerra ou pola construção de uma
barragem (pág. 197).
2Bom,
acho que nada é gratuíto neste romance.
3Nunca
sabemos que país é, mas tanto tem.
Silêncio que cicatriza, por Susana S. Arins
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10:41:00
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