Intuir o bosque na dispersão das sementes, por Susana S. Aríns



Abro o Atlas, de Alba Cid, com algo de medo. Temo uma cartografia ocidental e cega. Um recorrer o mundo em modo turista. Um olhar que faz do umbigo europeu o centro do universo e a lua única que ilumina a noite. E o que temo sempre que nosoutras nos internamos nos continentes outros.
E não. Não dou com isso. Dou com alguém que convida e diz, senta, calma, escuita: vou-che botar um conto.
Porque abrir este atlas não é recorrermos linhas num mapa e seguirmos um itinerário na procura do exótico, mas passearmos a vista por velhos herbários a nos relatar apócrifas origens de flores ajardinadas, ulirmos o saim de peixes ocultos no fundo dos lagos ou saborearmos a ligeireza duma pintura tecida em teia de aranha. Os poemas contam estórias resgatadas do fundo dos arquivos das antigas bibliotecas de idosas universidades que muitas nunca pisaremos. Partilha com nós a poeta o assombro da descoberta, do exotismo achado no mesmo centro do umbigo europeu que eclipsa a lua com ricto de dama enfadonha.
Têm em comum as histórias de cada ciclo o gosto pola observação atenta1, a reclamar a nossa atenção aos pormenores, à filigrana na raiz da madeira talhada, ao azul tão klein e molhado da primavera, ao gesto de um fento ao abrir os braços. No final de cada conto, desculpa, poema, a ligação com o pessoal, com a reflexão da voz lírica, com as suas impressões do mundo.
Como qualquer atlas de prezo, o poemário está edificado em continentes. Cada um deles um par de contos. Um nos deslizar polos nomes estranhos, pola linha de costa esquartejada polo gelo, polas fitas de coco e as nervaduras de plantas. As aves, elas, a voar de uma massa de terra à outra, migrantes garças e grous, tecendo redes entre espaços aparentemente diferentes. E assim, damos com cruzamentos surpreendentes, como encontrarmos a Safo na América ou o Celan na Ásia, cigarras soterradas durante anos até emergirem no poema.
Os textos, longos, divididos sempre em partes, acompanhados de fotografias e lâminas, dançam entre o aforismo e a prosa, sem esquecer nunca a analogia ou a incandescência por trás da palavras.
Atlas desborda citações de toda classe de autores, autoras e produtos culturais vários, desde o bilhete postal que é barco ou casa até a etimologia exata das mastabas e os versos de Anne Carson. Provavelmente percamos muitas delas, ignorantinhas que somos, leitoras com referentes distintos dos da autora. Podem estar bem trazidos ou bem levados, quem sabe, já nos dissemos ignorantinhas, mas nesse trazer e levar, deixamo-nos arrolar e, como um canto de berce, longe de nos afastar da leitura, de nos atirar fora do poema, todas essas citações fazem com que continuemos o caminho, pendentes da surpresa, do abraio de cada nova descoberta, essa lâmina miniada da que não sabíamos, aquele bestiário medieval nunca encontrado, essoutra lenda que ninguém nos narrou.
Permitimo-nos o luxo de não entender literalmente e chegamos ao final felizes de saber que restam no mundo uma cheia de maravilhas por conhecer. Como quem abre um atlas e traça nele as viagens futuras.
Isto é todo quanto li. Isto é todo quanto sei.

Alba Cid: Atlas.
Editorial Galaxia 2019
1A cadência do senta, calma, escuita. 

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