Abro o Atlas, de Alba
Cid, com algo de medo. Temo uma cartografia ocidental e
cega. Um recorrer o mundo em modo turista. Um olhar que faz do umbigo
europeu o centro do universo e a lua única que ilumina a noite. E o
que temo sempre que nosoutras nos internamos nos continentes outros.
E não. Não dou com isso. Dou com alguém que convida e diz, senta,
calma, escuita: vou-che botar um conto.
Porque abrir este atlas não é recorrermos linhas num mapa e
seguirmos um itinerário na procura do exótico, mas passearmos a
vista por velhos herbários a nos relatar apócrifas origens de
flores ajardinadas, ulirmos o saim de peixes ocultos no fundo dos
lagos ou saborearmos a ligeireza duma pintura tecida em teia de
aranha. Os poemas contam estórias resgatadas do fundo dos arquivos
das antigas bibliotecas de idosas universidades que muitas nunca
pisaremos. Partilha com nós a poeta o assombro da descoberta, do
exotismo achado no mesmo centro do umbigo europeu que eclipsa a lua
com ricto de dama enfadonha.
Têm em comum as histórias de cada ciclo o gosto pola observação
atenta1,
a reclamar a nossa atenção aos pormenores, à filigrana na raiz da
madeira talhada, ao azul tão klein e molhado da primavera, ao gesto
de um fento ao abrir os braços. No final de cada conto, desculpa,
poema, a ligação com o pessoal, com a reflexão da voz lírica, com
as suas impressões do mundo.
Como qualquer atlas de prezo, o poemário está edificado em
continentes. Cada um deles um par de contos. Um nos deslizar polos
nomes estranhos, pola linha de costa esquartejada polo gelo, polas
fitas de coco e as nervaduras de plantas. As aves, elas, a voar de
uma massa de terra à outra, migrantes garças e grous, tecendo redes
entre espaços aparentemente diferentes. E assim, damos com
cruzamentos surpreendentes, como encontrarmos a Safo na América ou o
Celan na Ásia, cigarras soterradas durante anos até emergirem no
poema.
Os textos, longos, divididos sempre em partes, acompanhados de
fotografias e lâminas, dançam entre o aforismo e a prosa, sem
esquecer nunca a analogia ou a incandescência por trás da palavras.
Atlas desborda citações de toda classe de autores, autoras e
produtos culturais vários, desde o bilhete postal que é barco ou
casa até a etimologia exata das mastabas e os versos de Anne Carson.
Provavelmente percamos muitas delas, ignorantinhas que somos,
leitoras com referentes distintos dos da autora. Podem estar bem
trazidos ou bem levados, quem sabe, já nos dissemos ignorantinhas,
mas nesse trazer e levar, deixamo-nos arrolar e, como um canto de
berce, longe de nos afastar da leitura, de nos atirar fora do poema,
todas essas citações fazem com que continuemos o caminho, pendentes
da surpresa, do abraio de cada nova descoberta, essa lâmina miniada
da que não sabíamos, aquele bestiário medieval nunca encontrado,
essoutra lenda que ninguém nos narrou.
Permitimo-nos o luxo de não entender literalmente e chegamos ao
final felizes de saber que restam no mundo uma cheia de maravilhas
por conhecer. Como quem abre um atlas e traça nele as viagens
futuras.
Isto é todo quanto li. Isto é todo quanto sei.
Alba Cid: Atlas.
Editorial Galaxia 2019
1A
cadência do senta, calma, escuita.
Intuir o bosque na dispersão das sementes, por Susana S. Aríns
Reviewed by segadoras
on
09:52:00
Rating:

Ningún comentario: