Roteiro imaginário (ou não) pola obra de Xela Arias

Os roteiros imaginários (ou não) são uma versão fantasiosa dos roteiros biográficos. Exigem por parte das participantes a capacidade de se deslocar a outros lugares pois o espaço em que se desenvolvem não deixa de ser uma metáfora doutros espaços.
Os roteiros imaginários (ou não) nascem da leitura atenta da obra das autoras roteiradas e não são outra cousa que uma escusa para partilharmos os seus textos.
Neste caso preparamos o roteiro a partir da Poesía Reunida (1982-2004) de Xela Arias1 para ele ser efetuado no Parque do Castro, em Vigo, mas como não deixa de ser metáfora, pode ser adaptado a qualquer outro lugar. E como nasce da leitura, pode ser modificada a seleção para nascer uma outra nova.
Porque há tantos roteiros imaginários (ou não) como leitoras tenham as obras.



1ª parada: Escavação do Castro.

Isto que cá temos não é um castro, mas o lugar do aquelarre, aquele em que as bruxas se arrejuntam para comentarem malolhados botados, feitiços desfechados, ajudas e atrancos postos às vizinhas, segundo merecença de cada uma. E a este lugar de aquelarre chegou Xela bem meninha, através dos sonhos. Porque foi, sobre todo, meninha sonhadora, quer dizer, aprendiza de meiga. Nos seus encontros bruxeris aprendeu que os monstros não são muitas vezes monstros, que o estranho o é porque não o olhamos como deve de ser, que onde outras vem uma bruxa, tu podes ver uma aliada.

E así o contou: A muller que trataban por bruxa (pág. 16)

E com as bruxas, em aquelarre, aprendeu Xela o poder do conjuro, das palavras imperativas que ela dirigia não ao demos mas às leitoras, para elas se achegarem à poesia:

Cristal (pág. 386)

2ª parada: miradouro sobre o porto de Vigo.

Aí, no porto de Vigo, apanhou um dia Xela o vapor. Os capitães do barco, Carlos Oroza, James Joyce, Castelo Branco, Baudelaire. Daquela as mulheres tinham proibido patronear. E desde o vapor, ou a literatura, nem sei, pensando-se exilada, migrada, viageira, acabou por conhecer o mundo. Atravessou línguas e e letras, e deu chegado, não sem esforço, ao País de Nenhures.

Só ningures país da decapitación non ten leis (Pág. 98).

E no País de Nenhures apatria-se e independencia-se para ela decidir que fronteira há de atá-la, onde a língua e onde a guerra. Dali trouxe, dessa sua independência, mochila carregada ao lombo, línguas e letras novas que reescreveu para nós nas coleções de Xerais. Jan Rhys ficou lá nas Antilhas, sem visado de entrada na Galiza, mas só sabermos que Xela tencionava trazê-la para nós, faz com que admiremos as escolhas que ela fez entre os portos de acolhida. E no trazer e levar de línguas aprendeu a arte de despronominá-las, de revirar-lhes as costuras e mudar-lhes os sujeitos em eutunós.

[Tal confundes verso e palabra] (Pág. 304)


3ª Parada: um banco no caminho.

Reparai! Isto descubrimo-lo no arquivo da biblioteca da Fundación Penzol. Neste banco, justamente neste, ceivou Xela o seu primeiro fanzine, não sabemos se kinkalha fina ou carel. Desconhecemos o nome e mesmo os conteúdos, pois esse é o espírito fanzineiro: fazer da poeta franco-tiradora2 que dispara palavras desde o esconderijo e muda de agocho para novamente, noutro banco, pegar um tiro, verso violento, e cravá-lo nas tempas das transeuntes. Porque Xela gostava de procurar as leitoras na rua, e não na butaca azul com um deus a sentar nele. E decidiu, sendo ela trabalhadora de Xerais, não transitar edições de autora ou prémios literários. Antes a veríais no banco do parque, no bar, no cenário cantada entre sons de guitarras que no andel da livraria.

Assim lho deixa claro às “artistas” acomodadas.

Para «artistas» (Pág. 226).

4 ª Parada: uma zona arvorada.

Ter na casualidade a origem é o sino das filhas de mestre. Em Sárria nasceu Xela, como podia ter nascido em São Miguel de Castro ou em Tremoedo ou mesmo em Sárdoma, levada polos destinos escolares do papá Valentín. Como toda filha de mestre o carro era casa e caminho que levava do lugar velho ao lugar novo, do destino à família, do conhecido ao desconhecido. Neste anos Xela pôde viajar à selva dos pássaros, ao bosque dos leopardos, teve um acidente e caiu com o carro do pai, que conduzia ela por uma barranco e foram aves azuis que a resgataram, uma vez, rapina, não sabemos se minhato ou falcão, outra3. Mas não por ventureiro o lugar da nascença é alheio… os carvalhos, as lagartas, as congostras escuras, a água a escorregar nas fervenças vão fazer parte da memória pessoal da poeta e combinarão-se com mares, prédios, avenidas e fumo de tabaco construindo um filme em que podemos ver, no mesmo écram, vários planos fundidos.

-Comencemos pola morte- (Pág. 134)


5ª Parada: Miradouro sobre Vigo.

Este é o miradouro da poeta. A poeta como miradouro. Poeta miradoura. Assim o via Xela. Miradouro livre desde o que a sociedade deixa uma fenda para a subversão, para a criação desde ela de um microcosmos de revolução afetiva, porque fala desde uma olhada expertizada em axexar o humano, e fai-no em pílulas de emoção e ritmo4. Os instrumentos: a olhada e a palavra. E aqui, tantas tardes, sentava Xela a olhar o mundo, as pessoas, as suas paixões e medos e contradições, para fazê-los palavra, poema, verbo.

[Pola palabra que arrase os ritos da perfidia] (Pág. 218)

6ª Parada: um espaço recolhido e com sombra.

Aqui, neste espaço, inventaram Xela e as amigas uma atividade que virou universal: o botelhom. Vigo era calquera vila desartellada da Transición, por veces bastante convulsa, inhóspita moitas tardes, onde a mocidade con inquedanzas literarias ou de calquera tipo tiñamos que procurar o noso propio alimento. Daquela simplemente era a curiosidade urxente por vivir, conquistar un mundo propio, tomar posesión de todas as horas do día e a noite e de todos os libros, pubs, músicas... Todo moi propio da idade, por outra banda. Iso é o que adoita acontecer aos 18. Xela era esa inquedanza e esa fame na extrema do considerado propio da idade. Eu tiraba de instituto para azalgar a curiosidade e de verdade que foi un tempo vizoso. 
Todo era unha conquista atractiva: usar o galego na escrita, loitar polo carril bici de Vigo, andar soas ás once da noite, aprender que a autodeterminación dos pobos era un dereito obvio, bañarse espidas no mar, viaxar fóra de Galicia e comprobar que seguía funcionando o de sentírmonos galegas, autodefinirmonos feministas, viaxar fóra de Galicia e comprobar que había mundos mellores…  recorda Susana Trigo5.
Já daquela doía o mundo.

1984 (Pág. 83).
[Sei que os teus recordos de hoxe son como cascos de cervexa tirados pola rúa] (Pág. 202)

7ª Parada: Pradeira ou campo de erva.

Neste campinho, numa primavera de 1995 e de maneira precoce, botou a caminhar Darío, o meninho que Xela nasceu. Ele não recorda, porque as pessoas apagamos da memória as duas aprendizagens mais trabalhosas: a da fala e a do caminhar. Mas para isso escreveu Xela. Ela, a franco-tiradora, ela, a miradoura, atendeu aos pasinhos leves da criança sobre a erva, tão leves que nem sequer deixavam pegada, e anotou-nos a diário para Darío recordar.
E ofereceu-nos às leitoras uma mamã antes ausente das literatura. Porque o ofício mais antigo do mundo carecia entre nós de manuais feitos por nós mesmas. E Xela escreveu a mamã. A mamã temente de virar gaiola, de transformar a franco-tiradora em polícia anti-distúrbios, a miradoura em vigilante jurada. Xela registou esse medo a diário para sempre recordar(mos).

[Busco o modo de te acompañar sen estorbo] (Pág. 258)
[Cun par de metros, a distancia,] (Pág. 259)

8ª Parada: Miradouro semi-circular.

Uma das experiências marcantes na adolescência do Xela foi a visita a este lugar. Nunca tal pensara ela. Incomodada pola obriga de acompanhar a pai e mãe num dos seus passeios, nem atendeu ao que diziam. Subiu ao carro às sete da manhã sem querer escuitar sequer a paisagem. Levava-a em si, disse mais tarde. Chegaram a Sabucedo com tempo de subir ao Campo do Peom. Lá, no alto, perto do Cádavo e a Conla, ainda enfurrunhada, viu chegar as greas de bestas e garanhões e poldros levadas por mãos espertas que nem ronçavam os animais. A raiva adolescente virou fascínio. E fascinada acompanhou a baixada do monte até este curro onde admirou a revolta das bestas perante a tentativa de lhe domear cabelos e crinas e pele. Nunca mais os cavalos, explosivos e ardentes, abandonaram os seus versos.

[Faísca quebrada dunha primeira volta] (Pág. 85).

9ª Parada: Entre dúas árvores.

Sei que só podo escrever desde mulher, desde míope e desde galega, disse algures Xela. Quiçãs era essa, a olhada desfocada das míopes que lhe permitiu enxergar as entrelinhas ao Vigo que ninguém mirava. E no tendal que todos os dias se encarregava de atender, entre estas duas árvores de aqui, compaginou a vida diária e aprendeu o preciso para estarabouzar a sida poética que nos mantém tão homens e mulheres: afetadas.

Autopoética (Pág. 401)

E no tendal, o que melhor enxugamos, sempre, as bragas. De mulheres, míopes, galegas. Como somos quase todas as poetas.

[Celebro en ti, lembrando a moitas] (Pág. 410)


10ª e Útima Parada. Galeões de Rande.

Nesta praia véu arrancar chapapote dos cons Xela. A estúpida batalha não era contra os galeões nem contra os elementos, mas contra a química diplomata dos conformes. Com os dedos longos rabunhava a areia e era piche o que enjertava nas unhas. As âncoras de nada serviam no mar sólido. Intemperiada, desclemente, bramou como tantas um nevermore universal, inchado de corvos e versos. E com os dedos enjertados em chapapote rascunhou o poema. O protesto.

Never more (Pág. 425).



1Edicións Xerais de Galicia, 2018. As referências aos textos que acompanham este roteiro são todas dessa edição.
4Parafraseamos as palavras da autora na palestra Para que os poetas hoxe?: http://culturagalega.gal/album/docs/doc_18_5.pdf

5http://www.asega-critica.net/2019/08/intemperiome-con-xela-por-susana-trigo.html

Texto: Susana S. Aríns
Fotografías: Andrea Jamardo, Emma Pedreira e Arancha Rodríguez

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