Leituras atravessadas, por Susana S. Aríns



Escrevi uma vez um poema de título vulnerabilidade1. A ele me foi a cabeça durante a leitura. Mas se isto é isso que eu queria contar! E chego aqui, atravessada por Sara Ahmed e a sua Política cultural de las emociones.
Adoro ler a quem lê o mundo para mim sem eu saber e me remove e incomoda até eu rever e reler todo o pensado e todo o escrito. Adoro ler quem explica com claridade aquilo que antes só eram intuições, a quem deita luz sobre aquilo que eu escrevo às apalpadelas. Para isso estão as filósofas: para iluminar as tentativas fracassadas das poetas.
La política cultural de las emociones é uma obra relativamente antiga (2004) e que chega a mim na segunda edição da autora, dez anos após. Dez anos de meditação e reflexão e revisão de ideias, argumentos e conceitos. Gosto de ler como outras são dinâmicas no seu pensamento. Como publicar uma obra, que ademais marca um caminho, não as impede de continuar a elaborar razão e teoria.
O caminho que contribuiu a abrir Sara Ahmed com esta obra é o dos estudos dos afetos, básicos nas teorias feministas, pois aí muitas vezes somos enviadas as mulheres como ao quarto dos ratos ou da costura. O interesse da autora é analisar e explicitar a relação entre emoções, corpo e política, ligando desta maneira o mais íntimo e pessoal (o corpo) com o mais público (a política) e desfazendo a hierarquia aparente de pensamento sobre emoção (considera que as duas correm irremediavelmente de mãos dadas: sentipensamos, que diria a amiga Carmen Loureiro). Para isso centra-se em cinco emoções que considera significativas para entendermos as políticas capitalistas e liberais do século XXI: a dor, o medo, a repugnância, a vergonha, o amor.
A autora vincula as emoções com o corpo. A nossa vida ordinária consiste em não nos lembrar do corpo que habitamos e percebermos os seus limites e fronteiras quando só quando certas emoções o fazem reagir. A dor, o nojo, a vergonha, o amor fazem com que o nosso corpo procure ou rejeite o contacto com outros corpos e aí é onde o sentimos e quando marca, de maneira rotunda, a nossa sociabilidade. Porém desvincula essa reatividade do intuitivo, o individual, para relacioná-la diretamente com a aprendizagem, com as marcas sociais e culturais. De aí a possibilidade de manipular as emoções para mover comunidades e grupos. E de aí também a dificuldade de vencer essa manipulação porque atua no mais íntimo, no mais próprio: o nosso corpo.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre a dor. Considera que a experiência da dor pode ser solitária mas nunca privada. Solitária porque ninguém pode saber como é a dor da pessoa sofrente e nunca privada porque em quase todas as ocasiões, quem sofre só suplica a presença de uma testemunha que reconheça a sua dor. Assim o viveu ela com a sua mãe, doente crónica, que necessitava dar estatuto de evento, de feito no mundo, a algo que só ela sentia. E atravessam-me a sua análise da política do governo australiano com respeito à dor das suas aborígenes genocidadas porque me traz à memória a (anti)política neste estado com a dor das vítimas republicanas do 36. E no mais imediato, a releitura do tratamento que dou à dor no meu seique. Atravessada.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre o ódio. Como provoca nos nossos corpos repulsão. Como o ligamos sempre ao amor, pois odiamos aquilo que faz perigar quanto amamos. E atravessa-me a sua análise dos discursos do fascismo inglês e a construção das demais como outras, como inimigas. Ou como, utilizando um texto de Audre Lorde, mostra como as vítimas do ódio tantas vezes acabam por olhar-se no mesmo espelho de ódio com que são olhadas.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre o medo. O medo faz-nos sentir ao outro como um perigo para a nossa existência, como algo do que nos temos que separar, manter distância. Ao tempo explica-nos como habitualmente é quem menos perigo corre quem mais assustado vive. E como o medo é utilizado para restringir certos corpos a través do movimento e expansão de outros: a mulher que deve ficar na casa porque a rua não é segura para ela. E atravessam-me a sua análise dos discursos do medo após o atentado do 11S e o tratamento às migrantes e solicitantes de asilo. Como o medo ao terrorista acaba por fazer de certos corpos, corpos temidos.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre a repugnância. O nojo faz com que sintamos como ofensiva a proximidade de um outro corpo. Como associa essa repugnância à viscosidade, ao peganhento. À dificuldade de algo não ser nem líquido nem sólido, o que lhe permite aferrar-se a nós. E como essa repugnância, ligada ao medo e ao ódio provoca que associemos corpos ao perigoso, ao nojento, ao odiado: terrorista, muçulmano, paqui.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre a vergonha. Considera que há uma relação direta entre reconhecimento e vergonha: reconhecemos que fizemos algo que não deveríamos e sentimos vergonha. O corpo reage. Coramos. Baixamos a olhada. A vergonha devém em emoção domesticadora e de domesticação. Sentimos vergonha quando não respondemos a esse ideal de nós que construímos em função do que a sociedade aguarda de nós. E atravessam-me a sua análise da vergonha nacional, através do programa australiano Bringing them home, em que o estado manifestava a sua vergonha polo tratamento dado às aborígenes no passado. E da vergonha movemo-nos para a desculpa e a sua capacidade de cicatrizar feridas. E como estas perdem valor quando não há ações posteriores que as confirmem. Como muitos enunciados de lamentação não assumem nenhuma responsabilidade. A que se compromete uma nação quando pede desculpa? No imediato vêm a mim essas desculpas solicitadas polo governo mexicano ao governo espanhol e as raivadas negativas vomitadas desde esta banda do Atlântico.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre o amor. Como este pode ser utilizado para impor a outras um ideal particular ao lhes pedir que cumpram um ideal se querem fazer parte da comunidade. Como aplicamos esse ideal ao outras (ciganas, migrantes, pobres) às que tantas vezes acusamos de preferirem viver em guettos a fazerem parte do (nosso) mundo.
Chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre a [in]comodidade. A autora parte da análise da normalidade heterosexual para desenvolver este conceito. A normatividade (neste caso a heterosexualidade) é cómoda para quem pode habitá-la. Não tendemos a notar o que é cómodo, mesmo quando pensamos que sim. Na comodidade o nosso corpo relaxa, expande-se, destesa-se. Estar cómoda é não distinguir onde é que acaba o nosso corpo e começa o mundo. E associa isto como o prazer, como a capacidade de entrar no espaço social ou habitá-lo com comodidade. E o poder de fazê-lo. No imediato, reflexionar sobre as nossas comodidades como primeiro passo para (re)construirmos a nossa identidade.
Porém, sobre todas as cousas, chego aqui atravessada polas reflexões de Sara Ahmed sobre o assombro. E aí nos re-encontramos a filósofa e a poeta. Considera que o que é ordinário, familiar, próximo, habitual, passa a não ser reconhecido conscientemente. Para isso precisamos do assombro, que transforma o ordinário em extraordinário. Que faz do quotidiano, diferente. E expande a nossa visão, como uns lentes de cores e dimensões novas. Defende a autora, que o assombro nos dá energia para a luita e capacidade para a transformação social e política, porque nos aprende a ver o mundo como algo que não tem que ser e como algo que chegou a ser com tempo e trabalho. Dinâmico. Modificável.
E com assombro e alegria fechamos as últimas páginas do livro.


Sara Ahmed: La política cultural de las emociones.
Traducción de Cecilia Olivares Mancuy. Universidad Nacional Autónoma de México. Centro de Investigaciones y estudios de género. México 2015.

1sou uma skinless / hipersensível / todo sufro sinto todo / alheio pesar / desgraça má sorte / carícia leve / roçamento / que o corpo percorre. // couraça preciso. / pedra curtida / que me defenda / madeira em coiro / que me deschova / casca de vidro / que me resguarde. // casa no monte / a proteger da dor. // seiva a salvo. [de]construçom, 2009.   

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