Aquilo que as odes não lembram por Susana S. Arins


Aquilo que as odes não lembram temos que recordá-lo nosoutras. E as odes esquecem escravas e pobres e mulheres. E as odes cantam a vitória. Mas por trás da vitória está a verdade de quem, mesmo perdendo, lutou.
Com estas premissas de fundo constrói o seu último romance Marilar Aleixandre, A filla do Minotauro.
Afeitas estamos que a literatura galega feminista revise as figuras e personagens da mitologia grega. A Penélope naveganta de Xohana Torres inicia um caminho que outras seguiram, a própria aAleixandre entre elas. No seu poemário Mudanzas aparecem-se boa parte das personagens que resgata para este romance e já daquela a reivindicar uma outra maneira de escrever a história: 

dixera que comías carne humana
e era peixe crú
cumpríalle algunha escusa
ao colonizador
para furar o teu olho
roubar o teu ouro
só che queda, como aos rapaces de Gaza,
arrebolar croios1

Neste fragmento do poema A Polifemo encontramos a ótica desde a qual está narrada A filla do Minotauro. São os vencedores da história quem deturpam a história para contá-la ao seu jeito, colocando às perdedoras na marginalidade dos monstros. Na não humanidade. São as próprias monstras, as silenciadas, as que colhem a palavra no seu livro para oferecer-nos outra visão do assunto.
A filla do Minotauro transcorre na Sicília, em 1944. Recém liberada a ilha do fascismo polas tropas aliadas da II Guerra Mundial, vira em ninho de traficantes e máfias que aproveitam o caos da posguerra para o roubo de obras de arte. Contra elas mobiliza-se parte do povo siciliano, apoiando à clandestina Liga das Gorgonas no seu trabalho de proteger o património cultural da ilha. 

Miranda, protagonista da narrativa, moça adolescente e não por isso menos esperta ou conscienciada, une-se a essa liga e participa da salvação duma das peças mais cobiçadas. 

Sicília é aqui espaço de refúgio e espaço de perigo. Vemos como boa parte das integrantes da Liga são chegadas de outras terras e reinos, fugidas de guerras, injustiças ditatoriais ou perseguições ideológicas. A taberna do Minotauro é espaço de encontro para estas gentes e aí vive Miranda, filha dos taberneiros. Mas estas pessoas têm que ver-se com a máfia, que aproveitando o desgoverno toma de facto o poder no lugar. 

Um dos elementos mais atrativos da obra é o seu tratamento do tempo. O da narrativa é lineal, com pequenas paradas para as personagens contar os seus passados. Todo habitual aí. Mas não acontece o mesmo com o tempo histórico. Como já indicamos a trama está perfeitamente acotada num tempo concreto. 

[…] Mira como escribirían os romanos o ano en que estamos, 1944 – e collendo a lousa escolar que había sobre a mesa escribiu nela MCMXLIV -, e compárao coa nosa (pág. 38). 

Mas sobre-exposto a esse ano 1944 paira o tempo indefinido do mito, através das personagens e as suas estórias pessoais. Pois encontramos um traficante Oliseus, que não é outro que Ulises, ou um Polieufemio que nos traz ao cíclope até a atualidade, um De Dalus inventor, um mensageiro Narcurio, uma Kalypso protetora ou o pai Asterio, amo da taberna do Labirinto. Também os lugares são reconhecíveis para nós: Cnossos, Creta, Naxos, Atenas ou a ferraria do Etna misturam-se com Agriggento, Caltanissetta, Siracusa, Trapani ou a estrada 115 que cruza Sicília. Colocamo-nos pois, no tempo mítico mas não nele porque a fome da posguerra eis a está e a calçada sem piche também. Mas é a guerra a segunda mundial ou a troiana? Essa ambiguidade no tratamento temporal reduz distâncias de milénios e faz-nos sentir com que as guerras são todas a mesma, e nelas são os mesmos os que ganham e as mesmas quem perdem. Ao tempo iguala os saqueios: que diferença há entre aquilo que Ulises roubou na sua volta a Ítaca e o que procuram os expoliadores no século XX? 

Em realidade, aquilo que nos recorda Marilar Aleixandre são duas máximas que deveramos acolher como básicas no feminismo: lá onde há injustiças, há pessoas a luitar contra elas, ainda que ninguém as nomeie, e que a história não é lineal, mas um continuum onde convivem diferentes visões do mundo em confrontação. 

Sempre encontraremos Oliseus no nosso caminhar, mas também daremos com Mirandas e Polieufemios e Antelmos.

Marilar Aleixandre: A filha do Minotauro. Galaxia 2018

1Marilar Aleixandre: Mudanzas e outros venenos. Galaxia 2017 (pág. 147).
Aquilo que as odes não lembram por Susana S. Arins Aquilo que as odes não lembram por Susana S. Arins Reviewed by segadoras on 10:00:00 Rating: 5

Ningún comentario:

Con tecnoloxía de Blogger.