Quem tivera alguma vez interesse no historia da bruxaria, saberá do
Malleus
maleficarum, o tratado mais
completo sobre as bruxas, contemporâneo à época
de caça mais frutífera. Era o guia de inquisidores e torturadores
para fazer um trabalho bem aprimorado. Quem tivera alguma vez
interesse na historia da tortura saberá da cadeira das bruxas, ferro
a se cravar nas entranhas reclamando confissão, saberá das
tatuagens em ferro candente, do rapado de cabelos e pêlos, todos,
saberá da submersão em águas frias e caldas. Quem tivera alguma
vez interesse na história das infâmias saberá nomes: saberá de
Martín del Río e do seu Disquisitionum
magicarum libri sex,
saberá do processo de Zugarramundi, saberá de Alfonso de Salazar e
a sua crítica às torturas.
Todo isto, e mais, demonstra conhecer fundamente,
no seu Palabra de bruxa,
Andrea Barreira Freije, mas com a mestria de não o mostrar.
Um dos grandes perigos dos romances históricos,
ou daqueles que sem ser históricos, são colocados em épocas
distantes da nossa, é o excesso expositivo. A abundância
explicativa. A cornucópia contextual. Contar-nos como comiam,
dormiam, sentavam, caminhavam naquelas idades para que nos fique
claro o fundo trabalho documental da escritora. Que é um tribunal
inquisidor. Como funciona um moinho. Que peças de roupa veste cada
grupo social. Quanto lhe leva a uma carruagem fazer uma posta entre
Queixumes e Naibaco. Informações desnecessárias que empecem a
leitura da trama.
Andrea Barreira sabe que naquelas idades as
mulheres comiam, dormiam, sentavam, caminhavam e eram tratadas coma
hoje somos tratadas. Por isso nos poupa os contextos e opta por
trazer a nós as vozes e os boatos. As opiniões e as reflexões. As
estórias e os contos. Os feitos. E quem não souber de bruxaria,
torturas, infâmias, ficará com vontades de ir a wikipédias e caros
barojas, porque a curiosidade é o pouso que deixa a leitura.
Palabra de Bruxa
descreve o julgamento ao que é submetida Berenice, da casa das
Xanas, acusada de ser bruxa, assim em geral, mas de todos os delitos
associados a este, em particular. Cada particular é uma parte das
que artelha o livro: o delito de não depender de homens, o delito de
ser parteira, o delito de não acreditar no deus cristão, o delito
de sandar feridas e doenças, o delito de ter relações sem ser
casada…
Numa estrutura que de longe recorda à d’A
Esmorga1,
cada parte começa com a voz altisoante do juiz a recitar a acusação
para continuar a narradora a relatar os feitos tal qual aconteceram.
O ponto de vista dança dumas personagens a outras, mas tem especial
presença a da Berenice e a do Pío Salazar, caçador caçado. Nesta
narrativa dos feitos vamos compreendendo o espaço que ocupam as
mulheres acusadas de bruxaria na sociedade da época: a margem, a
desobediência, o incomodo. Na figura de Berenice são concentradas
todas as características que podiam cumprir as suspeitas: serem
autónomas social e economicamente, possuirem terras ambicionadas
pola vizinhança, contarem com conhecimentos ou saberes vedados a
outrem, praticarem a medicina por fora dos canais acadêmicos.
Berenice faz todo isso e mais: é pagã. Acredita na Natureza como
deusa e pratica ritos e crenças desses que a Igreja exterminou ou
assimilou como próprios. Todas as atividades da Berenice podem ser
vistas duma outra maneira. E assim o recorda de contínuo a narradora
com uma frase que devém leit-motiv: quen
escuitasse, quen visse, quem observasse, quem contemplasse a cena
poderia pensar que… era uma dança do demo, era uma serva do demo,
era uma paixão do demo, era todo obra do demo. Mesmo as cousas mais
quotidianas e naturais.
Berenice
non abriu os ollos até que sentiu uns choros fortes, contundentes.
Quen escoitase podería pensar que acabava de nacer unha nena tan
poderosa que se podería dicir que era filla do Demo. Xoana e Pío
non eran quen de articular palabra. Cortaron o cordón… (pág.
117).
Percebemos as percepções sem necessidade de
escuitar os testemunhos, mas como Pío, podemos imaginar
perfeitamente que vizinho narra e como cada um dos feitos provados
para a acusação2.
Só as vozes de três personagens escuitamos
durante o juíço. A do juiz acusador a recitar delitos e reclamar a
confissão da ré. A do Pío Salazar, advogado defensor, a fazer um
discurso que utiliza o argumento da inferioridade feminina para lhe
evitar a morte à acusada. E só, no final, entre as lapas da
fogueira, a voz da protagonista. A mesma Berenice e defender a sua
vida e as suas práticas. A negar-se à súplica. A reivindicar o seu
mundo em extinção.
Andrea Barreira consegue manter a nossa atenção
mesmo sabendo quase desde início o fim do conto (quem sabe de
histórias da bruxaria, da tortura, da infàmia, sabe). Consegue que
acreditemos nas personagens e as leiamos reais, autênticas,
possíveis. Consegue mergulhar-nos na atmosfera da época e do lugar
só com a força das palavras. Palavras de Escritora.
Só não percebemos mui bem o lugar que ocupa o
romance no repertório da editora, pois pensamos que o seu público é
mais amplo que o juvenil ao que vai destinado a coleção Costa
Oeste.
Andrea Barreira Freije:
Palabra de Bruxa.
Editorial Galaxia, 2018.
1
A autora consegue, só com as escolhas de estilo e língua que as
leitoras percebamos claramente a distância, brutal, entre poder e
vítimas.
2Isto
parece-nos do mais logrado da obra: evitar-nos os testemunhos
histéricos ou raivados de personagens vingativas, como nos típicos
filmes judiciais.
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