Quem leia, perceberá. Palavra de bruxa por Susana S. Arins

Fotografía Paula Gómez del Valle

Quem tivera alguma vez interesse no historia da bruxaria, saberá do Malleus maleficarum, o tratado mais completo sobre as bruxas, contemporâneo à época de caça mais frutífera. Era o guia de inquisidores e torturadores para fazer um trabalho bem aprimorado. Quem tivera alguma vez interesse na historia da tortura saberá da cadeira das bruxas, ferro a se cravar nas entranhas reclamando confissão, saberá das tatuagens em ferro candente, do rapado de cabelos e pêlos, todos, saberá da submersão em águas frias e caldas. Quem tivera alguma vez interesse na história das infâmias saberá nomes: saberá de Martín del Río e do seu Disquisitionum magicarum libri sex, saberá do processo de Zugarramundi, saberá de Alfonso de Salazar e a sua crítica às torturas. 
 
Todo isto, e mais, demonstra conhecer fundamente, no seu Palabra de bruxa, Andrea Barreira Freije, mas com a mestria de não o mostrar. 
 
Um dos grandes perigos dos romances históricos, ou daqueles que sem ser históricos, são colocados em épocas distantes da nossa, é o excesso expositivo. A abundância explicativa. A cornucópia contextual. Contar-nos como comiam, dormiam, sentavam, caminhavam naquelas idades para que nos fique claro o fundo trabalho documental da escritora. Que é um tribunal inquisidor. Como funciona um moinho. Que peças de roupa veste cada grupo social. Quanto lhe leva a uma carruagem fazer uma posta entre Queixumes e Naibaco. Informações desnecessárias que empecem a leitura da trama. 
 
Andrea Barreira sabe que naquelas idades as mulheres comiam, dormiam, sentavam, caminhavam e eram tratadas coma hoje somos tratadas. Por isso nos poupa os contextos e opta por trazer a nós as vozes e os boatos. As opiniões e as reflexões. As estórias e os contos. Os feitos. E quem não souber de bruxaria, torturas, infâmias, ficará com vontades de ir a wikipédias e caros barojas, porque a curiosidade é o pouso que deixa a leitura. 
 
Palabra de Bruxa descreve o julgamento ao que é submetida Berenice, da casa das Xanas, acusada de ser bruxa, assim em geral, mas de todos os delitos associados a este, em particular. Cada particular é uma parte das que artelha o livro: o delito de não depender de homens, o delito de ser parteira, o delito de não acreditar no deus cristão, o delito de sandar feridas e doenças, o delito de ter relações sem ser casada… 
 
Numa estrutura que de longe recorda à d’A Esmorga1, cada parte começa com a voz altisoante do juiz a recitar a acusação para continuar a narradora a relatar os feitos tal qual aconteceram. O ponto de vista dança dumas personagens a outras, mas tem especial presença a da Berenice e a do Pío Salazar, caçador caçado. Nesta narrativa dos feitos vamos compreendendo o espaço que ocupam as mulheres acusadas de bruxaria na sociedade da época: a margem, a desobediência, o incomodo. Na figura de Berenice são concentradas todas as características que podiam cumprir as suspeitas: serem autónomas social e economicamente, possuirem terras ambicionadas pola vizinhança, contarem com conhecimentos ou saberes vedados a outrem, praticarem a medicina por fora dos canais acadêmicos. Berenice faz todo isso e mais: é pagã. Acredita na Natureza como deusa e pratica ritos e crenças desses que a Igreja exterminou ou assimilou como próprios. Todas as atividades da Berenice podem ser vistas duma outra maneira. E assim o recorda de contínuo a narradora com uma frase que devém leit-motiv: quen escuitasse, quen visse, quem observasse, quem contemplasse a cena poderia pensar que… era uma dança do demo, era uma serva do demo, era uma paixão do demo, era todo obra do demo. Mesmo as cousas mais quotidianas e naturais.

Berenice non abriu os ollos até que sentiu uns choros fortes, contundentes. Quen escoitase podería pensar que acabava de nacer unha nena tan poderosa que se podería dicir que era filla do Demo. Xoana e Pío non eran quen de articular palabra. Cortaron o cordón… (pág. 117).

Percebemos as percepções sem necessidade de escuitar os testemunhos, mas como Pío, podemos imaginar perfeitamente que vizinho narra e como cada um dos feitos provados para a acusação2
 
Só as vozes de três personagens escuitamos durante o juíço. A do juiz acusador a recitar delitos e reclamar a confissão da ré. A do Pío Salazar, advogado defensor, a fazer um discurso que utiliza o argumento da inferioridade feminina para lhe evitar a morte à acusada. E só, no final, entre as lapas da fogueira, a voz da protagonista. A mesma Berenice e defender a sua vida e as suas práticas. A negar-se à súplica. A reivindicar o seu mundo em extinção. 
 
Andrea Barreira consegue manter a nossa atenção mesmo sabendo quase desde início o fim do conto (quem sabe de histórias da bruxaria, da tortura, da infàmia, sabe). Consegue que acreditemos nas personagens e as leiamos reais, autênticas, possíveis. Consegue mergulhar-nos na atmosfera da época e do lugar só com a força das palavras. Palavras de Escritora. 
 
Só não percebemos mui bem o lugar que ocupa o romance no repertório da editora, pois pensamos que o seu público é mais amplo que o juvenil ao que vai destinado a coleção Costa Oeste.

Andrea Barreira Freije: Palabra de Bruxa.
Editorial Galaxia, 2018.
1 A autora consegue, só com as escolhas de estilo e língua que as leitoras percebamos claramente a distância, brutal, entre poder e vítimas.
2Isto parece-nos do mais logrado da obra: evitar-nos os testemunhos histéricos ou raivados de personagens vingativas, como nos típicos filmes judiciais.

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