Aprender a voar com às decepadas por Susana S. Aríns


O Xoel vive imerso na virtualidade de uma vida entre a escola e o ecrã. Como a de tantas adolescentes. Uma escola alheia e uma consola alheia também. Merlo Branco, um anônimo internáutico, propõe-lhe uma série de reptos por arrancá-lo da abulia em que vive (abulia, mas que é isso, um insulto, um palavrão?). Para resolver os enigmas melrazes, o primeiro deles, o significado do abúlico, o Xoel contará com a ajuda da sua panda, integrada pola Laura, o Daniel, o Fábio e a Eunice.
Marica Campo recolhe a estrutura das Aventuras dos Cinco, de Enyd Blyton, e transforma-a para colocar-nos a rapaziada do século XXI a desvendar mistérios semelhantes àqueles de Georgina e família. O Xoel passa de utilizar o computador e os recursos da rede para esconder-se da realidade e sumir na apatia daquele que o tem tudo, a fazer deles uma ferramenta para sair a descobrir o mundo que o envolta.
O Merlo Branco peteira nele o suficiente para esporear a sua curiosidade e demostrar-lhe que com ela acompanhando, a vida é muito mais interessante.
E lá vam o Xoel e a panda na busca do merlo branco (existem?), atrás da tomba do herói inglês que deixou atrás uma pantasma, do castelo que guarda beijos nas escadas, dos protetores alcolitos (por vezes acontece), ou do Blackbird, esse moto-veleiro que anda a construir o avô don Santiago. A través destas pesquisas, vai-se fortalecendo a amizade entre as crianças e, em especial, o vencelho entre avô e neto.
A autora aproveita a história para incluir nela, à maneira de pílulas, temas de arte, geografia, literatura, música, educação ambiental, corrupção urbanística… As crianças aprendem ornitologia básica, essa que já perdemos em muitos lugares, diferencia um merlo de uma pega de um peto de um tordo; sabem de John Moore e dos Beatles; aprendem o que foi o projeto Blackbird, a etimologia dos seus nomes, as diferenças do seu galego com os outros galegos do mundo ou a origem das figas; descobrem um campo de antas e resolvem a ameaça que assoma pola banda da alcaldia: a expropiação das terras do avô do Xoel.
Para que todas estas sub-tramas liguem bem e não pareçam forçadas, a autora utiliza dous elementos: a figura da narradora, entremetida, opinadora e sabedora de todo, mesmo daquilo que as personagens ignoram. Mas, sobre todo, reclamante da atenção das leitoras para os pormenores importantes. Exerce explicitamente o seu rol de organizadora da narrativa e muda de espaço e tempo quando o considera necessário, indicando os seus passos atrás e adiante, da vila à aldeia, da escola à casa dos avôs, da atualidade aos anos sessenta.
Por outra parte, a escolha das personagens. Boa parte delas têm estudos e trabalhos relacionados com parte dos temas surgidos na narrativa, de maneira que serão essas personagens as encarregadas de fornecer-nos informações e dados necessários para avançar na trama: o avô engenheiro, o pai advogado, a mamai médica, uma outra mãe arqueóloga. Só que com estas vímbias, é claro, a história fica situada num contexto sócio-económico quiçá algo artificioso: as crianças podem fazer e desfazer sem problemas, têm sempre alguém que as traia e leve aonde queiram, têm todas famílias acolhedoras que favorecem as suas aventuras… Bom, em realidade, como nas Aventuras dos Cinco, de Enyd Blyton.
E, por ser uma narrativa dirigida a adolescentes, não podiam faltar os enredos amorosos. E aqui é onde para nós range a narrativa.
O prota é um menino, o Xoel.
O prota gosta de uma menina, a Eunice.
Tacháááám! O prota consegue a menina.
É certo que é ela quem dá os primeiros passos no amorio, e assim racha com a norma social. É certo que ela vê como dous moços competem pola sua atenção e deixa claro na narrativa que não é de ninguém. Mas a cena final em que se oficializa a relação de parelha faria com que, se a Eunice for coerente, mandasse a tomar vento ao Xoel:
Riqui aproveitou aquel momento para lle coller o sitio ao lado de Eunice. A rapaza protestaba e pedíalle que marchase cando Xoel volveu.
- Riqui, moi agradecido por coidares a miña moza mentres estiven ausente. Agora déixame sentar.
Díxoo con tanta firmeza que Riqui se ergueu decontando e volveu ao seu posto. Desde alí botáballe olladas asasinas, mais el non se daba por avisado.” (pág. 215)
Porém, a sub-trama que mais nos incomoda é a do passado do avô. Don Santiago é viúvo. Criou sozinho à filha Carme, após voltar da Califórnia, onde trabalhava de engenheiro na Lockheed. Mas no meio da narrativa confessa-se com o neto. Com o neto, insistimos: em realidade, não é viúvo. Encontrou à mulher com um amante e fugiu com a menina de ambos a outro país (este) para criá-la como órfã. A conversa com o neto parece-nos arrepiante. A autora coloca no cativo a pergunta de se os quereria matar, e a resposta do avô…
- E ti que fixeches? Non che deron ganas de matalos?
- Si… e non. Pero abofé que comecei a odiala. Nun primeiro momento teríaos esganado aos dous, mais eu penso o que fago. Coido que todos os que asasinan à muller cometen un crime execrable, mesmo que esta lles sexa infiel. Son xente primaria, que non lle pon cancelas aos seus instintos…” (pág. 113, os itálicos são nossos).
Quer dizer, atuar de maneira racional é castigar à mulher com o sequestro e roubo da filha.
O avô deposita toda a responsabilidade do segredo no Xoel. Obriga ao neto a conhecer uns feitos que tanto afetaram à vida da sua mamai, Carme, sem permissão para contar-lho à vítima. Certo é que o avó mostra explicitamente o seu arrependimento, certo é que aparece a cantiga da Joan Baez, O preso número 9, com uma crítica aos assassinatos machistas, mas algumas lemos até o final, aguardando o momento da filha saber da mãe pródiga. E continuamos a aguardar.
Porque aquela narradora governadora dos fios da trama decidiu que não era assunto nosso:
[Carme e Paco]… convidáronos a visitar Galicia para exerceren eles de anfitrións e compensaren, no posible, tantos desvelos. Linda respondeu que ese era o seu maior desexo, que a non tardar moito estarían aí. E fixérono. E a voz do sangue non calou, mais esta é outra historia que deixamos à imaxinación dos lectores e das lectoras. (pág. 210, itálicos da nossa resposabilidade)
Xoel aprendeu a voar. Carme desconhecemos. E, neste conto, quiçá era ela quem nos interessava.



 Marica Campo: E Xoel aprendeu a voar. Oqueleo 2017.

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