Fotografía de Ruth Matilda Anderson
Ruth Matilda Anderson. Carro de aluguer, mulher no
guiador (ainda não fora inventado aquilo do perigo constante),
bestas quando o caminho não dá, o
laboratório instalado no quarto da fonda, acarão da cama e as
malas, essas malas carregadas por mocinhas de pés espidos da estação
do comboio ao centro da vila. Branco e preto. E toda a luz.
Foi aí que me levou a Margot Sponer. Ou melhor, o Antón Figueroa
que fez por recuperar esse nome, essa figura, para nós.
Na minha cabeça dançam agora juntas as duas
mulheres, estrangeiras chegadas à Galiza na mesma época e da mesma
maneira a recorrer o país (teriam quadrado algures? Falariam-lhes à
uma da outra, à outra da uma?), uma por dar com cada uma das cores e
dos tecidos, a outra por escutar cada um dos sons e dos sotaques. E
captar toda a luz. As duas.
Margot Sponer foi uma filóloga alemã, autora da
primeira tese doutoral sobre a língua galega, defendida em Berlim em
1935. Para a realização do seu estudo andou pola Galiza, caminhando
as suas comarcas e conversando com as suas gentes, na década de 20.
Assinalava-o tudo, a cadeira, a mesa, a casa, o carreiro, o telhado,
os animais da corte, a saia e o avental, aquela erva azulada acarão
do laranjeiro, e perguntava, quem sabe como, como chamais a isto? E
tudo o anotava após fonológica escuita. E mudava de lugar e voltava
a assinalar as mesmas coisas, diferentes em casas outras, e tudo o
anotava e assim construía notas e mapas.
E penso nela, a provar socas e meias de lã, a
dormir nas casas da mestra, da boticária, a manter conversas na
taberna, na escola, desde um espanhol misturado com galego e italiano
e vêm as fotografias da Ruth M. Anderson e percorro-as com calma e
admiro-as tanto e profundamente (as imagens, a Ruth, a Margot) que
lamento não ter sabido dela até o de agora.
Mas o Antón Figueroa traz mais cousas no seu
estudo, e coloca bem no título uma palavra das grandes: resistência.
Porque Margot Sponer era alemã e universitária e instalada e
Berlim, na década de 30, do Hitler, da Wehrmacht, da GESTAPO. E isso
obriga a tomar posição. A fazer escolhas. Toda a sombra. Toda a
luz.
Margot Sponer. Do galego antigo ás fronteiras
da resistência é, na aparência, um
ensaio para filólogas entusiastas (para mim, vamos): uma pesquisa
para recuperar o trabalho, muito especializado, duma investigadora de
inícios do século XX. Mas, no avanço da leitura o que encontramos
é o relato dum compromisso. Um compromisso claro com a diversidade,
com as indefesas, com as perseguidas.
A primeira escolha de Margot Sponer é o objeto de estudo. Era
filóloga românica. Podia centrar o seu trabalho em grandes línguas.
É provável que todo corresse mais fácil, em recursos e prestígio,
se isso fizesse. Porém, escolheu a língua pequena, uma dessas que
nem sequer foram levadas ao campo científico, de tão desprezadas e
ignoradas. Decidir-se pola língua galega foi uma maneira de tomar
partido. De escolher a luz.
Mas não foi a única. Margot Sponer escolheu ficar em Berlim quando
outras iam embora, caminho do exílio. E escolheu ficar em Berlim
porque desde aí podia ajudar, às rebeldes, às judias, às
comunistas. Às anti-nazistas. E novamente luz.
E depois nem sequer sombra. Só trevas.
Assassinada pola Gestapo, provavelmente, o seu
nome foi esquecido, o seu trabalho arrombado no faio e a luz apagada.
Como a de tantas mulheres que antes que nós foram.
Neste sentido, o trabalho de Antón Figueroa foge
das margens da filologia para instalar-se no da memória histórica.
Mesmo precisa de recorrer às fontes das que bebe esta última. No
rastejo de hemerotecas e fundos de arquivos e cartórios notariais
são-nos furtadas informações, falta verdade, mesmo dando com os
feitos. Por isso deve recorrer às fontes orais, aos documentos
privados, aos testemunhos familiares.
E a leitura não é só a da biografia duma
mulher, mas o diário, roteiro de navegação, duma obsessão, da
viagem de um autor por toda Europa a seguir as pistas que ela tenha
deixado, como em jogo, e que traz luminosos encontros com pessoas
ainda há nada atravessadas pola presença de Margot Sponer.
Assim, o linguístico estudo e asséptico devém em canto à
dignidade, a insubmissão, à ética. E faz que as leitoras, mesmo
sendo filólogas, sintamos o orgulho todo de contar com Margot Sponer
entre as nossas antecessoras. E toda a luz.
Margot Sponer. Do galego antigo ás fronteiras da resistência
Antón Figueroa, Laiovento 2017
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