Homenagem literária - O Sul de Adelaida Garcia Morales por Fausta Cardoso

Fotografía Paula Gómez del Valle

Perdi a conta ao número de vezes que li O Sul de Adelaida Garcia Morales. Mas lembro-me da primeira leitura. Eu tinha dezassete anos e acabara de comprar o livro na Feira do Livro de Lisboa. Na altura, as promoções da feira valiam realmente a pena e eu gastava as minhas poupanças na lista de obras que durante todo o ano compunha. No ano anterior comprara O Silêncio das Sereias que li uma, duas, três, quatro vezes, como quem ouve uma música em modo repeat. Esperei um ano inteiro pela feira para deitar as mãos, os olhos, a atenção às páginas de O Sul. Esperei um ano inteiro para voltar a ouvir a voz quente de Adelaida numa nova história.

É a voz de Adelaida que oiço a cada leitura. Pausada, abraça-me e puxa-me para uma hipnose que confesso não ser igual à de Elsa em O Silêncio das Sereias. A minha hipnose é, também, cega, mas ao mesmo tempo consciente. Procuro nas entrelinhas tudo o que ficou por escrever como quem procura no invisível os momentos mais intensos. É uma fome que nunca se esgota, muito pelo contrário, parece crescer, crescer, crescer, sem limites ou preocupações dietéticas. O invisível é imenso e confesso-me sempre insatisfeita com qualquer interpretação que faça. Eu não chego para tanto, embora continue a tentar.

Tento mais uma vez. Peço desculpa a Adelaida - sei que me ouve - pela minha teimosia e aos leitores deste cantinho de crítica pela minha, reconhecida, incapacidade. Mas não consigo deixar de prestar homenagem a uma autora que está tão esquecida, mesmo em Espanha onde continuo a procurar por ela (não, não, esta é a Elvira Navarro, digo ao livreiro); mesmo em Portugal apesar da mais recente edição da Relógio D’água, traduzida por Hélia Correia.

A ausência é tema-objecto da autora. Adriana fala com o pai que morreu quando ela tinha quinze anos. Agora, é como se lhe escrevesse a carta que nunca lhe chegará às mãos. Diz-lhe o que ficou por dizer. Confessa-se e confessa-lhe o magnetismo que sentia por ele, a atracção como um abismo, cai, não cai, cai, não cai, forças opostas que, em desafio, se tentam equilibrar.
A figura paterna encontra-se rodeada em mistério e silêncios, uma espécie de nevoeiro onde a filha tenta entrar sem conseguir orientar-se bem, e se umas vezes vê o contorno do pai e sente-se próxima, logo em seguida perde-o e fica desorientada.

Talvez que tu, sempre tão absorto noutra coisa que eu desconhecia, naquela dor pela qual não me atrevia a perguntar-te, não chegasses a ver como dependia de ti na vida e te reconhecia como o único ser que me amava incondicionalmente.”1

Tudo o que para os outros estava errado no pai, para Adriana era o certo. A solidão a que ele obrigava a família, a renuncia aos rituais da fé e à própria fé, foram elementos que a criança aprendeu a aceitar embora isso a obrigasse a anular-se e a reconhecer que tinha, ela própria, pequenos desejos, como vestir o traje de rainha para a Primeira Comunhão. A criança acredita que esta atitude de recusa e de comiseração lhe permitem o acesso a um novo campo de forças: o pêndulo.

Adriana aprende com o pai a usar o pêndulo. Procuram água e outros objectos e assim a filha vê-se a corresponder às expectativas e a reforçar os laços que os tornam membros de um mundo exclusivo que ninguém mais compreende nem pode compreender; um mundo encarado com desconfiança - um mundo do domínio do mal.
A mãe e a amiga Josefa estão do lado errado, do lado dos que não podem compreender. Mas Adriana também está do lado errado. Do lado de um casamento que há muito terminou, aliás, ela é a única que impede o pai de tornar a separação definitiva. 
 
«Quando fores grande, não te cases nem tenhas filhos, se queres fazer alguma coisa de interesse na vida.» E depois, como se fosse um comentário banal, acrescentaste: «Mesmo que seja só para teres a liberdade de morrer quando quiseres.»”2

A morte, esse invisível que atrai e afasta, e do qual nada sabemos. A morte como ausência definitiva, não adquire em O Sul poder libertador, nem para o pai, nem para a filha. Quando sinais de vida começam a despontar na criança, agora adolescente, quando a arrancam da solidão e dos silêncios impostos, essa energia vital confronta-se com o seu oposto, fixado ao longo de anos de resignação. É então um momento complexo de crescimento, sendo para tal necessário desencadear pequenas mortes. E é precisamente neste momento que Adelaida escreve sobre o sentido figurado e literal do termo. A morte faz parte da vida.
A linearidade é apenas aparente neste pequeno conto, muito mais complexo do que o número de páginas sugere. Em Sevilha, para onde Adriana segue à procura de descobrir o passado do pai, a jovem sente que as “pedras estão vivas” e cheias de “secretas palpitações.” A cidade surge como metáfora para as descobertas que esta jovem se prepara para enfrentar. “Havia nela qualquer coisa de humano, uma respiração, um fundo suspiro contido.” 3
Se a matéria do corpo é finita, pois a vida é feita de outras dimensões a que só acedemos se as etapas anteriores estiverem concluídas. E tal não significa que se alcança o desejado. Muito pelo contrário, “longe fica o desejo em relação à realidade que vivemos quando julgamos realizá-lo.”4 Confrontar os segredos do pai só a leva a concluir que a ausência será sempre um problema sem solução, invencível e eterna.

Psiquiatras explicariam este livro com as pinças próprias de Freud. Os críticos literários também não deixariam passar este elemento e escreveriam sobre a complexidade de lidar com o tema em meia dúzia de obras, inclusive de Adelaida. Eu prefiro a metáfora do pêndulo. Energias que se sentem, que procuram o que não se sabe ainda que está escondido mas se supõe. O pêndulo enquanto interface de mundos pouco racionais, sempre sensíveis, que aproxima, afasta e comporta segredos que são como leis indiscutíveis para quem tem a sensibilidade de os reconhecer. O pêndulo para definir o encontro e desencontro de uma filha com o seu pai.

O mesmo pêndulo serve de imagem para escrever sobre a prosa de Adelaida. A autora acede a um mundo confessional e com um domínio perfeito das palavras e dos ritmos, a força poética do texto trespassa a matéria de que é feito o papel e os corpos para entrar no mais profundo de nós próprios. O leitor não tem de fazer qualquer exercício para entrar dentro da história. O magnetismo do texto impõe-se como uma lei do universo, a mente fica em repouso e só as recordações desse espaço mágico que é a infância existem no mundo - a história entra dentro do leitor.

A ausência é irreparável. Após a morte de um autor fica a sua obra, a voz que rompe o tempo dos mundos. Quando saio da livraria de mãos vazias porque não encontro os livros da autora que me faltam, sinto a angústia própria de quem não consegue fazer justiça. Este texto serve-me mais a mim do que a qualquer leitor da A Sega. Não há nada de novo no que escrevi e, mais uma vez, sinto-me insatisfeita. No entanto, quando me pediram para escrever sobre o que quisesse, decidi, na medida do possível, fazer justiça pelas próprias mãos.

Adelaida Garcia Morales, O Sul, Quetzal Editores (1988)




1 pág. 22
2 pág. 33
3 pag. 44
4 pag. 33

Comentarios