Acordaram-me as índias dos filmes da tevê: ser cheroqui, ser
aqui antes de chegar o homem branco. O verbo sem tempo. O verbo
intemporal. Não ser passado não
ser presente não ser futuro. Só ser. Nem sequer estar. Não fazer
diferença. Ser e estar como sinónimos. A essência na simples
permanência.
Logo loguinho caim na conta de que não,
que não podia ser
cheroqui, porque sempre as índias começavam com o seu exótico
nome: ser águia
dançante em tronada de inverno, ser cheróqui, ser aqui antes de
chegar o homem branco.
Nomes que levavam com eles a força do carácter, acaídos à
personalidade do eu que os portava, não como os nossos, Susanas ou
Marias que já nem sabemos que querem dizer. E a mulher da butaca é
uma mulher sem eu. O verbo sem tempo e sem pessoa. A ausência de sim
própria como essência. Ser sem ter que sem ter estar só estar sem
ser quem ser quenser.
E acordaram-me as áreas de
Broca e Wernicke, essas que habitam no nosso cérebro. E as suas
afasias. Ser quem de pronunciar mas não ser quem de perceber. Ser
quem de pensar mas não ser quem de pronunciar. Esquecer o nome mas
não esquecer o verbo. Não acertar a dizer o nome mas pronunciar
claramente o adjetivo. O cérebro como órgão incompreensível.
A mulher da butaca é uma mulher
de língua asintática, desmorfológica, contrasilábica, e com todo
e isso, absolutamente clara, inteligivelmente transparente. Eis a
arte de Esther F. Carrodeguas.
No seu, poemário?, texto
dramático?, brutal!, na butaca [fantasía nº 3 en Dor Maior],
dá voz à senilitude, for demência, for alzhéimer. E oferece-nos
uma voz tão apegada ao real, tão achegada a verdade quotidiana da
velhice mais dependente, que ressoa em nós após a leitura. A sua
mulher sem nome, sem eu, sem pessoa, continua gravada como um berro,
uma vergonha, um escândalo público.
E o que mais adoramos no,
poemário?, texto dramático?, álbum ilustrado?, é a total
adequação das técnicas e recursos escolhidos pola autora ao
objetivo artístico. Se abrimos o livro ao chou, chamará a nossa
atenção o jogo com as tipografias, a disposição das palavras no
espaço, desligadas, alteradas, os desenhos, os caligramas.
Todos estes elementos, que
associamos à brincadeira de vanguarda, são absolutamente
necessários para fazer da experiência leitora uma aproximação ao
discurso de quem perdeu a fala, Broca, Wernicke, de quem sumiu a
sintaxe polas simas dos alvéolos neuronais. Obriga à leitura ativa,
mesmo exigindo a ativação física, reproduzindo o esforço a que
nos obriga a relação com pessoas senis. A empatia como ação.
Outro elemento a destacar deste
texto dramático, lírico, gasoso, é a gradação e mistura das
emoções que o percorrem, peneiradas por um humor, escatológico às
vezes, tenro sempre. A voz protagonista passa das felicidade máis
singela ao terror absoluto, e ao desconcerto, e ao riso, e ao
cansaço, e à alegria, e consegue que as leitoras a acompanhemos
nesse percurso emocional.
Sentamos na butaca mas vivemos
na montanha russa.
E fechamos o livro e acorda-nos
que sim, que a poesia é inutilmente útil, que consegue, como nada,
fazer sentir a dor de outras que não sentimos, que é a mesma dor
que deveras sentimos.
Sem sintaxes nem morfologias nem
eus.
Só palavra. Ser.
Esther F. Carrodeguas: na
butaca [fantasía nº 3 en Dor Maior].
Editorial Galaxia, 2017
Sentada na butaca por Susana S. Aríns
Reviewed by segadoras
on
09:28:00
Rating:

Ningún comentario: