Todas as pessoas teríamos que ser feministas,
mesmo as tradutoras.
És feminista?
Sim
Não
Bom... / Imos ver... / Que percebes por
feminista? / Sim, mas… / Eu sou humanista. / etc
Se a tua
resposta é sim, quiçá o opúsculo Todos
teríamos que ser feministas não seja
para ti. Mesmo se respostas não podes escusar a leitura (para que?
Também não estarás a ler isto, provavelmente). Mas se fazes parte
no terceiro grupo, no das pessoas reticentes a dizer de boca cheia,
Sim, sou feminista, embora sensíveis à questões de género, este
sim é o teu livro.
Chimamanda
Ngozi Adichie preparou uma palestra TED para explicar o feminismo a
pessoas não feministas. E o texto dessa palestra, minimamente
adaptado, foi publicado posteriormente. Gozamos da vantagem de poder
ler o texto e escuitar a autora, que o modula e matiza com as suas
pausas, silêncios e inflexões.
Ngozi Adichie
faz um recorrido vital por momentos e experiências pessoais com os
que justifica a necessidade do feminismo. Começa com o próprio
conceito, feminista, que ela percebeu por vez primeira recebido como
insulto. E evoca cada um dos encontros com essa palavra até chegar a
se definir como uma “feminista feliz africana que não odeia os
homens e gosta do batom nos lábios e dos saltos para ela mesma e não
para os homens”. Já neste introito damos com uma das armas da
autora para ganhar às leitoras: o humor.
Pequenas
anedotas funcionam com novelos a partir dos quais, desemburulhados,
são tecidas reflexões sobre o que é a vida diária de qualquer
mulher em qualquer lugar do mundo. Porque se pensávamos que Ngozi
Adichie só ia reflexionar sobre A Mulher Africana (nigeriana, em
todo o caso), ela coloca por entre os exemplos as suas amigas
americanas, europeias. E se pensávamos que só ia reflexionar sobre
A Mulher Universitária, ela coloca por entre os exemplos as suas
amigas universitárias, sem trabalho, proletárias, sem estudos. E se
pensávamos que só ia reflexionar sobre uma questão concreta,
consegue tecer um tapete que recolhe infância, mundo laboral,
maternidades, adolescência, afetos, educação, velhice, estudos…
Cada apartado é o pé para uma conversa, um debate, um, e eu? E todo
isto em cinquenta breves páginas. É por isso uma obra especialmente
interessante para o trabalho em salas de aulas.
Uma das
principais preocupações da autora é fazer ver o que vivemos e
sentimos as mulheres no dia a dia, os subtis ataques quotidianos à
nossa identidade de género. Desbota a teorização (aborreceu os
“textos clássicos do feminismo”, pag. 16) e opta pola
sensibilização. Ela mesma o afirma: “unha cousa é saber algo no
plano intelectual e outra sentilo no plano emocional” (pág. 25).
Assim, oferece-nos esse plano, o emocional. Quem queira continuar a
aprender, ou a desaprender, como propõe, só tem que seguir a pensar
e a buscar.
Porém, lendo
este opúsculo, sentim-me uma feminista feliz galega que não
odeia os homens e gosta do batom e dos saltos
só no antroido e
que raiva quando lê mal
traduzidas feministas felizes africanas que não
odeiam os homens e gostam do batom nos lábios e
dos saltos para elas mesmas e não para os homens.
A própria
autora dá importância brutal ao uso não discriminatório da
língua. Lembremos que começa o seu discurso reflexionando sobre a
palavra feminista e os seus usos. E se atendemos ao texto original em
inglês, tem um especial cuidado na escolha dos nomes, buscando os
neutros para universalizar e só, só, recorrendo a masculinos e
femininos quando quer pôr em destaque o género duma pessoa em
concreto porque é pertinente para o que vai narrar. Fala de
“children” para a generalidade da infância, mas utiliza “boy”
e “girl” quando quer narrar experiências diferenciadas para
meninos e meninas. Mesmo recorre a duplicados para enfatizar: “both,
the boy and the girl”. Reparemos no título: We
Should All Be Feminist. Gostava
eu de saber onde a marca de masculino na escolha da autora. Por isso
não percebo por quê, havendo opções mais respeitosas1
com a forma e o fundo do texto, não foram elegidas polo tradutor.
Todo o que
encontramos ao longo do livro é uma falta de critério claro no uso
de genéricos e masculinos, o que induz a confusões na leitura:
justo isso que nos provoca no dia a dia às mulheres o uso machista
da língua. A autora sai em Lagos com “os seus amigos” (pág.
20), e lemos o trecho todo sem acabar de saber se entre os amigos há
ou não mulheres, se em Lagos as mulheres não saem e só o faz ela
ou se esse “os amigos” as inclui a todas. Claro, no original, ela
utiliza o termo “friends”, que bem podia ser traduzido por
“amizades” para evitar-nos o sarilho. Porque mais adiante
centra-se a autora na educação dos meninos, e aí sim, aí sim que
fala só deles, dos “boys” (pág. 30). Só que nós temos que
continuar a leitura até deduzir isto, porque o neutro é masculino e
o masculino é neutro e o masculino é masculino e o masculino é
universal e o universal nunca é mulher.
Mesmo há,
por vezes, uma masculinização abusiva por inecessária: onde a
autora utiliza “some people”, que pode literalmente ser traduzido
por “algumas pessoas”, o tradutor opta por “algúns”. Chega a
colocar a autora enunciando-se em masculino, cousa que nos choca e
parece quase impensável: “nalgún momento todos pensaremos”
(pág. 19), “o que era obvio para min non o era para todos os
demais” (pág. 20), “Todos teríamos que sentir xenreira” (pág.
25), “Todos somos seres sociais” (pág. 34), “aqueles que o
quixemos” (pág. 49), e assim por diante. Como dizia aquela
propaganda, ela nunca o faria. Mesmo outros são conscientes de que
há outra maneira de fazer2.
Porém, se
algo choca em mim como maço de ferraria, é a tradução de “gender”
como “roles de xénero”, sobre todo tendo em conta que o conceito
feminista galego nasce do inglês. Sim, em galego podemos escrever
género com o significado de “papéis,
comportamentos, atividades e atributos socialmente construídos que
uma determinada sociedade considera apropriados para homens e
mulheres"3.
Os “roles de género” são só um elemento mais da definição.
Só
duas explicações encontro a tal despropósito:
ou a ignorância ou uma intencionalidade ideológica4
que busca apropriar-se, matizando-o e suavizando-o, de um discurso
feminista de, vaia por deus, uma autora na moda5.
E qualquer das duas possibilidades implica um desrespeito total à
autora e a todo o seu leitorado. Violenta-se o discurso (feminista)
de Chimamanda Ngozi Adichie, distorsionando-o e, portanto, negando-o.
E claro, as
feministas felizes galegas que não odiamos os homens e gostamos do
batom e dos saltos só no antroido unicamente podemos sentir
xenreira. Mas não há problema, porque como bem diz Chimamanda Ngozi
Adichie, a xenreira tem um longo historial como detonante de mudanças
positivas.
Vamos pensar em quais…
Chimamanda
Ngozi Adichie: Todos teríamos que ser feministas
Tradução de
Moisés Barcia. Sushi Books 2017.
Chimamanda
Ngozi Adichie: We Shoud All Be Feminist
Palestra
TEDxEuston. https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc
1Todas
as pessoas teríamos que ser feministas, todo o mundo teria
que ser feminista, por exemplo.
2
Cualquier
intervención del traductor que fuera en dirección a esta
corrección política en cuestiones raciales, de género u otro
tipo, sería inmediatamente modificada por los correctores de la
editorial pertinente. Por ejemplo, hace
un par de años yo traduje un libro titulado We Should Be All
Feminists, la traducción del título ya encerraba una trampa de por
sí. La traducción correcta en mi opinión sería "todo el
mundo debería ser feminista", pero la traducción correcta
según la RAE, que considera que el masculino es el género no
marcado, hace que ese libro cuando salga a las librerías se
traduzca como "todos deberíamos ser feministas". Con
esto quiero decir que no creo que haya ningún tipo de presión a
este respecto a la hora de traducir.
El
fantasma de la traducción. Lorena Paz López entrevista a Javier
Calvo.
http://www.insulaeuropea.eu/letture/lopez_calvo_es.pdf
3Definição
da OMS, organização nada suspeita de feminismo.
4E
conhecendo tanto o corpus teórico sobre o tema e a quantidade e
qualidade de tradutoras feministas existentes como os antecedentes
do responsável com o feminismo e a tradução, penso mais no
segundo que no primeiro:
http://www.galicia21journal.org/A/pdf/galicia21_6_reimondez.pdf
5Que
ela seja a única autora do catálogo com fotografia pessoal na capa
é curioso…
Todas as pessoas teríamos que ser feministas, mesmo as tradutoras por Susana Aríns
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17:53:00
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