Os Doces brutos, de Ana Paula Maia, por Fernanda Garbero


venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”
Mateus, 6:9, 13.

Daqui de dentro do inferno cativeiro do governo
Que transforma a prisão e os que aqui se encontra preso
Em monstro em bichos pra elite social
Enquanto vocês ai fora tá vivendo na moral”

W2 proibida”, Trilha Sonora do Gueto.



Poderia ser como um tiro em primeiro plano: na cara, na lata, a sangue frio. É da condição de vulnerabilidade de quem escapou com um tiro de raspão que nos encontramos com as personagens de Assim na terra como embaixo da terra (Rocco, 2017), de Ana Paula Maia, escritora brasileira, negra, nascida em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Como se trata de um “encontro”, do lado de fora das celas, do outro lado do muro, habitamos com a nossa perversa ilusão de liberdade, de uma vida “na moral”, como diz a letra de “w2 proibida”, do grupo de rap “Trilha Sonora do Gueto”, composta a pedido do Primeiro Comando da Capital (PCC), para que fossem mostradas as condições subumanas do sistema carcerário de Presidente Venceslau II, no interior de São Paulo (link de acesso no final do texto).
A trama de agora se passa numa colônia penal em pleno processo de encerramento, numa referência bastante nítida ao livro Na Colônia Penal, de Kafka. Na mesma proporção cênica de diálogos paralelos, a história concomitantemente se tece do lado de fora, expondo uma sociedade que também evidencia a ruína e o apagar das luzes do seu equívoco sobre o controle. Nós e eles: os que se pensam protegidos pelo Estado e os bastardos socialmente construídos pelo abandono, numa relação de enfrentamento constante e de um perigo irredutível. Eles contra nós e o maniqueísmo sem limites de um tempo alimentado por câmeras de segurança, aplicativos de localização, cercas elétricas letais, defesa de porte de arma, benzodiazepínicos, antidepressivos, criminalização da maconha, condomínios fechados. Hermeticamente fechados pela “entrada social”: contra os pobres, os negros, os favelados, os da “entrada de serviço”, etc. Contra as pessoas que compõem o universo literário do romance e, em certa medida, o entorno de onde vem a autora; seus vizinhos da exclusão e nossas personagens do medo. Medo, medo e, por que não, mais medo, afinal, nada mais rentável em termos de investimento a longo prazo.
Mas lá estão eles, os outros. Separados de nós pelo asfalto, pela rodovia Presidente Dutra, pelas grades da prisão, pelas páginas dos livros, pelas telas da Netflix. Como enredo, seguimos todas as temporadas, assim como em nossa leitura irrefreável. Tanto na narrativa de Ana Paula Maia, quanto nos seriados da televisão fechada, essas imagens nos provocam desde seu lugar restrito: a ficção, mesmo que nossa consciência insista em nos lembrar que, do lado de fora de nossa bolha, elas nos esperam para ter o mínimo que sempre lhes foi negado ou retirado por nós licitamente, como parte de uma sociedade que desde muito cedo aprendeu a traduzir pobreza por crime (e castigo para os pobres).
O desfecho de Assim na terra como embaixo da terra é o ponto de partida do romance de 2013, De Gados e Homens, e poderia ter como subtítulo – daqueles subtítulos que nós, no Brasil, adoramos colocar para detonar alguns filmes – “a falência do sistema carcerário no processo de recuperação dos detentos”. A partir da personagem Bronco Gil, o/a leitor/a que percorreu as duas narrativas tem acesso à trajetória pós-cadeia, ou seja, seguindo pelo rumo dos brutos como projeto da autora, é por nossa infantil leitura da brutalidade que compreendemos (com o repertório de quem pode neste país gastar alguns reais comprando um livro) a dureza como imperativo de resistência. A sobrevivência para esses bastardos é a sobra de uma “vida nua”, relembrando o conceito proposto por Hannah Arendt, nunca um prêmio. O contexto da colônia faz com que eles saibam que “os que foram enviados a ela nunca tiveram a chance de sair para falar de sua existência” (MAIA, 2017: 43), transformando em prática os discursos que circulam na sociedade brasileira e gozam da simpatia de uma grande parcela de sua população crente de que “bandido bom é bandido morto”. Para escapar disso e agarrar os restos que lhe sobram, Bronco Gil precisa se levantar todos os dias, numa trilha escura, “cheia de morte, vingança e saciedade” (idem: 49).
A colônia, como território e metáfora, encerra seus condenados em uma situação de aniquilamento. Apagados, apartados e controlados pela mentira de uma tornozeleira elétrica que pode explodir, arrancando-lhes a perna em caso de fuga, eles não têm para onde correr. No entanto, é no momento em que se preparam para desativá-la que a imagem da explosão surge com o tiro da espingarda insone de Melquíades, o policial que nela também está enclausurado desde o primeiro dia, controlando “seus presos”. Assim como o oficial que se entrega à morte como prova de sua crença em falência na narrativa kafkiana, Melquíades, com sua extrema violência em contraponto à brutalidade daqueles que pensa controlar, nos conduz por uma corrida noturna suicida, em que matar ou morrer não são mais alternativas, senão continuidades decorrentes do que lhe foi delegado por nós: os de fora das celas; os presos de outras cercas.
O que poderia ser um tiro em primeiro plano, sem pena e sem dó na nossa cara, vira um tiro de raspão, contudo, perto do olho. Com dificuldades de enxergar, caminhamos de lado, escapando das páginas da narrativa e nos apegando ao que chamam de realidade nos noticiários que vemos à noite, para alimentar nosso horror àqueles que, como Bronco Gil e tantas outras personagens de Maia, são os outros. Filhos legítimos de um país excludente, depositamos nosso fracasso em carros blindados, muros altos e imprescindíveis remédios para o pânico. Reféns de nosso próprio isolamento e de nosso ódio de classe, somos ainda a imagem da prole que se senta à mesa com o pai, nos almoços de domingo por obrigação e cheios de rancores familiares.
Sem dó nem piedade, é da escrita de Ana Paula Maia que saímos cambaleantes como o coxo Valdênio, um dos detentos da Colônia. Com os olhos perdidos por nossa própria violência, não passamos de imitações bem cuidadas e alimentadas de Bronco Gil com seu olho de vidro. Através de seu projeto literário intitulado “A saga dos brutos”, que costura todos os romances precedentes a este, ela transforma em personagens os vultos de nossos pesadelos e dá a elas um corpo forte, inquebrável, conferindo-lhes um protagonismo na trama que nos enreda e nos mostra que a literatura, assim como o subsolo, ainda guarda muita coisa importante, incômoda e capaz de sustentar nossa precária ilusão de sonho.

MAIA, Ana Paula. Assim na terra como embaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017.



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