“venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”
Mateus,
6:9, 13.
“Daqui
de dentro do inferno cativeiro do governo
Que
transforma a prisão e os que aqui se encontra preso
Em
monstro em bichos pra elite social
Enquanto
vocês ai fora tá vivendo na moral”
“W2
proibida”, Trilha Sonora do Gueto.
Poderia ser como um tiro em primeiro plano: na cara, na lata, a sangue frio. É da condição de vulnerabilidade de quem escapou com um tiro de raspão que nos encontramos com as personagens de Assim na terra como embaixo da terra (Rocco, 2017), de Ana Paula Maia, escritora brasileira, negra, nascida em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Como se trata de um “encontro”, do lado de fora das celas, do outro lado do muro, habitamos com a nossa perversa ilusão de liberdade, de uma vida “na moral”, como diz a letra de “w2 proibida”, do grupo de rap “Trilha Sonora do Gueto”, composta a pedido do Primeiro Comando da Capital (PCC), para que fossem mostradas as condições subumanas do sistema carcerário de Presidente Venceslau II, no interior de São Paulo (link de acesso no final do texto).
A
trama de agora se passa numa colônia penal em pleno processo de
encerramento, numa referência bastante nítida ao livro Na
Colônia Penal,
de Kafka. Na mesma proporção cênica de diálogos paralelos, a
história concomitantemente se tece do lado de fora, expondo uma
sociedade que também evidencia a ruína e o apagar das luzes do seu
equívoco sobre o controle. Nós e eles: os que se pensam protegidos
pelo Estado e os bastardos socialmente construídos pelo abandono,
numa relação de enfrentamento constante e de um perigo irredutível.
Eles contra nós e o maniqueísmo sem limites de um tempo alimentado
por câmeras de segurança, aplicativos de localização, cercas
elétricas letais, defesa de porte de arma, benzodiazepínicos,
antidepressivos, criminalização da maconha, condomínios fechados.
Hermeticamente fechados pela “entrada social”: contra os pobres,
os negros, os favelados, os da “entrada de serviço”, etc. Contra
as pessoas que compõem o universo literário do romance e, em certa
medida, o entorno de onde vem a autora; seus vizinhos da exclusão e
nossas personagens do medo. Medo, medo e, por que não, mais medo,
afinal, nada mais rentável em termos de investimento a longo prazo.
Mas
lá estão eles, os outros. Separados de nós pelo asfalto, pela
rodovia Presidente Dutra, pelas grades da prisão, pelas páginas dos
livros, pelas telas da Netflix. Como enredo, seguimos todas as
temporadas, assim como em nossa leitura irrefreável. Tanto na
narrativa de Ana Paula Maia, quanto nos seriados da televisão
fechada, essas imagens nos provocam desde seu lugar restrito: a
ficção, mesmo que nossa consciência insista em nos lembrar que, do
lado de fora de nossa bolha, elas nos esperam para ter o mínimo que
sempre lhes foi negado ou retirado por nós licitamente, como parte
de uma sociedade que desde muito cedo aprendeu a traduzir pobreza por
crime (e castigo para os pobres).
O
desfecho de Assim
na terra como embaixo da terra é
o ponto de partida do romance de 2013, De
Gados e Homens,
e poderia ter como subtítulo – daqueles subtítulos que nós, no
Brasil, adoramos colocar para detonar alguns filmes – “a falência
do sistema carcerário no processo de recuperação dos detentos”.
A partir da personagem Bronco Gil, o/a leitor/a que percorreu as duas
narrativas tem acesso à trajetória pós-cadeia, ou seja, seguindo
pelo rumo dos brutos como projeto da autora, é por nossa infantil
leitura da brutalidade que compreendemos (com o repertório de quem
pode neste país gastar alguns reais comprando um livro) a dureza
como imperativo de resistência. A sobrevivência para esses
bastardos é a sobra de uma “vida nua”, relembrando o conceito
proposto por Hannah Arendt, nunca um prêmio. O contexto da colônia
faz com que eles saibam que “os que foram enviados a ela nunca
tiveram a chance de sair para falar de sua existência” (MAIA,
2017: 43), transformando em prática os discursos que circulam na
sociedade brasileira e gozam da simpatia de uma grande parcela de sua
população crente de que “bandido bom é bandido morto”. Para
escapar disso e agarrar os restos que lhe sobram, Bronco Gil precisa
se levantar todos os dias, numa trilha escura, “cheia de morte,
vingança e saciedade” (idem: 49).
A
colônia, como território e metáfora, encerra seus condenados em
uma situação de aniquilamento. Apagados, apartados e controlados
pela mentira de uma tornozeleira elétrica que pode explodir,
arrancando-lhes a perna em caso de fuga, eles não têm para onde
correr. No entanto, é no momento em que se preparam para desativá-la
que a imagem da explosão surge com o tiro da espingarda insone de
Melquíades, o policial que nela também está enclausurado desde o
primeiro dia, controlando “seus presos”. Assim como o oficial que
se entrega à morte como prova de sua crença em falência na
narrativa kafkiana, Melquíades, com sua extrema violência em
contraponto à brutalidade daqueles que pensa controlar, nos conduz
por uma corrida noturna suicida, em que matar ou morrer não são
mais alternativas, senão continuidades decorrentes do que lhe foi
delegado por nós: os de fora das celas; os presos de outras cercas.
O
que poderia ser um tiro em primeiro plano, sem pena e sem dó na
nossa cara, vira um tiro de raspão, contudo, perto do olho. Com
dificuldades de enxergar, caminhamos de lado, escapando das páginas
da narrativa e nos apegando ao que chamam de realidade nos
noticiários que vemos à noite, para alimentar nosso horror àqueles
que, como Bronco Gil e tantas outras personagens de Maia, são os
outros. Filhos legítimos de um país excludente, depositamos nosso
fracasso em carros blindados, muros altos e imprescindíveis remédios
para o pânico. Reféns de nosso próprio isolamento e de nosso ódio
de classe, somos ainda a imagem da prole que se senta à mesa com o
pai, nos almoços de domingo por obrigação e cheios de rancores
familiares.
Sem
dó nem piedade, é da escrita de Ana Paula Maia que saímos
cambaleantes como o coxo Valdênio, um dos detentos da Colônia. Com
os olhos perdidos por nossa própria violência, não passamos de
imitações bem cuidadas e alimentadas de Bronco Gil com seu olho de
vidro. Através de seu projeto literário intitulado “A saga dos
brutos”, que costura todos os romances precedentes a este, ela
transforma em personagens os vultos de nossos pesadelos e dá a elas
um corpo forte, inquebrável, conferindo-lhes um protagonismo na
trama que nos enreda e nos mostra que a literatura, assim como o
subsolo, ainda guarda muita coisa importante, incômoda e capaz de
sustentar nossa precária ilusão de sonho.
MAIA,
Ana Paula. Assim
na terra como embaixo da terra.
Rio de Janeiro: Record, 2017.
Os Doces brutos, de Ana Paula Maia, por Fernanda Garbero
Reviewed by segadoras
on
08:00:00
Rating:

Ningún comentario: