![]() |
Imaxe: Paula Gómez del Valle |
Por Susana Sánchez Aríns
- Vou-che
contar um conto.
- O conto
da boa pipa?
- Não, este que ninguém contou. Um conto
fantasiado. Todo mentira. Porque, quando a Galiza foi independente? Quando
acabou em república após irmandinha revolta? Quando tivemos um presidente de
nome Castelao? Todo mentira. Já sabes, é conto.
- Pois isso que
contas, bem verdade parece, que aparece o Getúlio Vargas, e o Graciliano Ramos,
e a Grande Guerra, e a tristeza do sertão... Até fotos nos dás.
- As imagens podem
ser engano.
- Como a boa pipa…
Esta é a arte de
Daniel Asorey. Brinca com a verdade e a mentira com a finalidade única de
atirar-nos dos olhos a venda que nos cega, a mesma que nos impede ver quem
fomos e, portanto, que somos. E boa falta fazia, que alguém colocasse no papel,
bem clarinho, o nosso lugar nessa história que sempre preferimos não ler.
O autor
introduz-nos no seu mundo à maneira documental, mostrando as provas da verdade:
a existência das cangaceiras. Nascemos ao romance com uma fotografia, tão
brutal como real, das cabeças cortadas, sem ilhas nem piratas. E, pensando que
estamos a ler recriação historicista, passa a situar-nos numa Compostela
amsterdiana, substituídos por canles os caminhos de pedra que conhecemos.
Falsidade. Como vão chegar as dornas à praça do Obradoiro!
E damos com elas.
Com as protagonistas. Matilda a Gringa, Maria Bonita, Carme de Candingas. Eis
as três. Com nome. E com capacidade de nomear o universo. Polos olhos e
pensamentos delas, em espaços diversos, desde posições sociais diferentes,
mesmo em distintos momentos históricos, vemos como aprendem que não são flores
deste mundo, que o que elas vem, pretendem, querem, não pode ser edificado lá
onde a história as colocou. Todas elas, as três, rebelam-se contra o seu
destino de mulheres obedientes. Estão dispostas a luitar por mudá-lo todo,
para, após o fulgor duma amarga descoberta, acabarem tão desiludidas como
cientes de que as suas ambições de justiça excedem-se em ambiciosas. Não serão
consentidas.
O acerto de Asorey
é colocar três personagens em três contextos que podemos considerar básicos em
qualquer tentativa revolucionária: o jornalismo, a luita armada e a
fiscalização dos poderes políticos. Matilda, jornalista que enxerga, além do
bandoleirismo, a miserenta vida no nordeste brasileiro; Maria Bonita,
bandoleira que descobre nos seus companheiros homens a violência brutal contra
as mulheres da que ela fugia quando se lhe uniu; Carme de Candingas, vedora da
república a denunciar, espantada, os crimes de lesa humanidade que em nome dessa
república são cometidos pola Companhia Galega das Índias[1]. As três vislumbram, fastiadas, que a sua
condição de mulheres também não é aceitada nos espaços da mudança. As três
descobrem que, chegado o momento, serão devoltas às domésticas paredes que lhes
foi consentido abandonar. As três representam a justiça, a solidariedade, a
empatia. A luita pola liberdade. Para todas. As três são ajustiçadas por isso.
Mas restam-nos os nomes. Porque há pessoas invisíveis que nem sequer tem nome.
Neste caso, pola arte da literatura, elas sim têm: Matilda, Maria, Carme.
Porém, para mim,
se Nordeste se faz uma leitura imprescindível é por colocar ao povo
galego no lugar que a nível histórico lhe corresponde: do lado do branco
europeu e colonizador que arrasou e escravizou meio mundo para edificar no
crime o seu progresso. É esse um momento histórico que nunca queremos ver,
quiçá, porque contradiz a nossa história construída no vitimismo. Participando
das conquistas americanas, gozando dos ganhos do ouro, do açúcar e da
escravatura, deixamos de ser o povo martirizado por Castela, para fazermos
parte dessa Europa cobiçosa que despreza, fora das suas fronteiras, os direitos
dos homens (só às vezes das mulheres) que promulga portas adentro. Nordeste
obriga-nos a olhar de frente os males dos que procedemos, num espelho
aparentemente deformado, e, focadas no reflexo, faz-nos reflexionar sobre o
papel do nosso povo na construção deste mundo injusto em que vivemos.
Mas tranquilas,
todo é um conto, como o da boa pipa.
Daniel
Asorey: Nordeste. Editorial Galaxia 2016.
[1] E não deixa de ser irónico que seja a
atual companhia espanhola das índias, Repsol-YPF, quem galardoe esta obra.
Comentarios
Publicar un comentario