Manual para escritoras de verdade(s)

Imaxe: Paula del Valle

Por Susana Sánchez Aríns


Limpa. Assim me pareceu a prosa de Lucia Berlin. Munda e clara. Nomeia o mundo como quem nomeia uma amiga. E tudo parece próximo e singelo, mesmo os tremores dos síndrome de abstinência, o frio congelado de andares sem calefação, o aborto horrível no lugar de confiança, ou o sexo na escuridade do fundo marino. 

Lucia Berlin escreveu contos. Contos nos que as narradoras, os lugares e as personagens submergem e reaparecem, como integrantes de um universo único, que coincide, aparentemente, com o da autora. Bella Lynn, César, as zonas mineiras, Sally, a irmã doente, as escolas de monjas, a mamá louca, México. Lês a uma numa estória e re-encontrá-la noutra estória com outras personagens. Com outras intenções.

Não furta os mãos sentimentos. Apresenta-os na sua natureza e descobrimo-los naturais, como os nossos. Sentimo-nos identificadas com essa mulher que não desculpa a mãe embora convença a irmã da necessidade do perdão. E com a professora que abofeteia o aluno admitindo que a fez sentir incomodada e doída. E com a adolescente que usa o poder do papá para danar uma trabalhadora.

A grande capacidade da autora é a da evocação. A de criar ecos, como diria Antía Otero, que reverberam durante a leitura e fazem que fiquemos paradas, a pensar, a sentir, que não, nós nunca desejamos ter uma tenda de licores aberta às quatro da amanhã, e nunca agredimos uma mestra, e nunca fugimos monte acima com um homem de sete anos, mas que sim o pudemos ter feito. Ou sim o quisemos ter feito. As protagonistas de Lucia fazem cousas más para terem algo que contar. Nós atendemos porque quiséramos fazer cousas más e gostamos de que elas contem. Embora essas suas vidas pareçam distantes, por desmedidas, por exíguas, por paupérrimas, por ricazes, paramos na leitura a cada pouco para deixar ir a mente até aquele dia, aquela conversa, aquele sabor a palmeiras verdes, aquele gesto. Somos como o advogado Cohen, espetador alucinado de umas vidas que dão prazer só no voyeurismo. Que marcam como cenas íntimas.

Porém, do que mais gostei de Lucia Berlin foi da enorme quantidade de literatura que esconde cada conto. De quanto nos engana ao fazer-nos acreditar que somos voyeurs consentidas da sua vida. Ela mesma nos adverte no conto Ponto de vista: está a fazer literatura, não biografismo testemunhal. E utiliza as armas que a escrita lhe dá para evitar-nos a turbação, a incomodidade, mesmo o aborrecimento. Convida-nos a ler, com acompanhamentos sensoriais e, como o advogado Cohen, sentamos à mesa e aceitamos quanto a narradora nos deita no prato. Sem temer o mal-estar. Ela conta de maneira que consegue comover-nos com toda a dignidade em que envolve as personagens das suas estórias. Mesmo a sua própria.

Por isso não gostei dos apontamentos biográficos que acompanham o volume, que buscam pôr em destaque as coincidências entre as anedotas da vida de Lucia Berlin e as das suas personagens. Como furtando-lhe a literatura. A arte de fabular. E obviando capas e contracapas e lapelas propagandísticas, temos que chegar ao último conto, Volver al hogar, para confirmar que sim, que o que faz Lucia Berlin é literatura de verdade, pura fabulação.

Lucia Berlin: Manual para mujeres de la limpieza.

Tradução de Eugenia Vázquez Nacarino. Alfaguara 2016.

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