Levada do vento

Imaxe: Paula del Valle

Por Susana Sánchez Aríns

Scarlett abaixa-se na aurora de um novo dia, ou no entardecer do fim da guerra, não lembro, apanha uma magra e triste cenoura e jura que nem ela nem nenhum dos seus voltarão passar fome, assim tenha que mentir, roubar, esmolar ou matar.
Lembro a primeira emissão televisiva de Gone with de wind. Lembro-me sentada, lá em 1986 (comprovei o dado nas redes, para melhor parecer) a carão de mamá para vê-la e lembro ficar obnubilada com a ousada Scarlett. Lembro ter visionado o filme em cada reposição posterior.
Também lembro ler, anos após (em 1999 se as anotações do meu volume não mentem), os Vínculos de sangue de Elvira Souto, um livro bem sugestivo e diferente  na altura (para mim) em que analisava só, e intertextualizando, personagens femininas e violentas de feminina autoria. De todos os capítulos, gravou-se em mim esse de Magnólia e luar, no qual me descobriu a heroína Melanie Hamilton que escondia Margaret Mitchell no romance original. Uma Melanie em absoluto inocente e dócil e lideresa/fundadora do KukluxKlan. Já daquela fiquei com vontade de ler. Sim. De ler a monumental obra e original, a raiz.
E foi agora que lim. Visualizando a cena cinematográfica em cada cena narrativa. Escutando a Clark Gable e Vivian Leigh (bom, às atrizes de dobragem) em cada diálogo que lia. Tanta era a fidelidade da versão fílmica.
Até que comecei a duvidar. Mas isto saia no filme? E casou tantas vezes Scarlett? E estivo tanto tempo de luito? E decidim visionar o filme uma outra vez.
É certo que transpôr um romance de 1300 páginas a roteiro cinematográfico é tarefa complicada. Porém, o que a mim me chocou foi essa infidelidade fiel que sentia a medida que avançava a leitura. E onde estavam as escolhas dos roteiristas. Que decidiram elidir na história de Scartlett e Melanie. Elvira Souto chamou a atenção sobre a questão racista. E quiçá por avisada, não me surpreendeu.
Surpreenderam-me, e muito, os rascunhos feitos na figura de Scarlett O'Hara, rascunhos que superficializam a personagem e apagam justo aquilo que a faz mais interessante. Porque Scarlett aparece-se no filme evoluindo de menina caprichosa e brincadeira a mulher forte que consegue vencer as dificuldades e cumprir aquele juramento: nunca mais passar fame. E sim, fazendo tudo o dito: mente, rouba, esmola e mata. Porém, no filme não acabamos de perceber as causas da sua desmedida impopularidade em Atlanta.
Numa conversa tão significativa como desaparecida do filme, com a velha Tarleton, esta explica a Scarlett que lhe parece bem aquilo que fez e faz (enganar o noivo da irmã para casar com ele, levar ela mesma os negócios, dirigir a plantação, aprovar um matrimônio na família com alguém doutra classe social), pois em tempos de crise não existe outra norma mais que salvar o clão. E eis o quiz: na guerra tudo está permitido, mesmo que as mulheres exerçam funções varonis, mas quando a crise passa elas devem voltar ser as mulheres que eram. E Scarlett nega-se, o que incrementa colossalmente a sua má fama. Não o percebemos bem no filme, porque uma das causas desta é subtilmente eliminada do roteiro, quiçá para fazer a figura mais amável e menos escandalosa: a sua vida marital.
No filme Scarlett é mãe uma só vez, e sofre um aborto posterior. A filha é do seu terceiro homem, e dá-se a entender todo o tempo que a sua relação com os cônjuges anteriores é quase virginal. Sem crianças, e portanto, sem relações sexuais. Se nunca foi beijada como é devido, diz-lhe Rhett Buttler! Mas esta não é a realidade do romance. Bonnie vem sendo a terceira criança de Scarlett, pois esteve prenhada dos outros dous homens com que casou. Quer dizer: casaria por interesse, casaria sem amor, mas deitou-se com esses homens. Bom, é parte do contrato. Mas acontece algo pior: durante toda a narrativa manifesta o fastio que lhe causam as crianças, que em realidade são atendidas todo o tempo por Melanie. O pequeno Wade chega a fugir dela. Para Ella não olha uma só vez: é feinha e aparvada. Uma mãe das más! E a pobre da Melanie sem poder ter mais crianças...
No filme Scarlett decide não ter mais filhas (e essa é uma causa das suas desavenças matrimoniais) e a mim gravou-se-me na mente a cena em que Mammy (ou Prissy) não consegue ajustar-lhe o corpinho. Não quer prenhar por não acrescentar o seu talhe. E outra vez não é essa a realidade do romance: já tinha três crianças ao lombo, três prenhes, três partos. E nenhum desejado. Por que havia de sofrer mais. Rhett Buttler propõe-lhe, quando enviúva, serem amantes, e ela resposta com um E eu que ganho? Ficar grávida e ter mais filhos? que causa regozijo ao amigo e escandalizaria a qualquer que escutasse a conversa.
Mas não só. Aquilo que mais a incomoda da maternidade é a ocultação. A norma social dita que uma mulher encinta deve fechar-se na casa até acabar de amamentar a criatura. Isso é quando menos um ano de doméstica vida. Ela nega-se. Tem que reger os seus negócios, atender o serradoiro, tratar compra-vendas com os yankies e não quer deixar as rédeas dos seus assuntos comerciais em mãos de (homens) incompetentes. Nos dous primeiros embaraços passeia a sua barriga enorme polas ruas de Atlanta arranjando aqui, traficando lá. E isso é o que escandaliza a sociedade sulista, bem mais que os motins clandestinos de Melanie. Dessa atitude provocadora, mostrando-se independente mesmo do seu esposo mais rico, é  da que se quer recuperar Rhett Buttler na parte final do filme. E não consegue.
Não podo jurar, mas para mim não é casual esta Scarlett autônoma e anti-maternal ser eliminada do filme, levada do vento. Antes teimosa que erma.

Elvira Souto: Vínculo de sangue. Laiovento 1993.
Margaret Mitchell: Lo que el viento se llevó. Ediciones B 2008.

Víctor Fleming: Gone with de wind. Selznick International Pictures 1939.

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