Há silêncios que são diferentes

Imaxe: Paula del Valle

Por Susana Sánchez Aríns

A tensão. Passar páginas devagar, roçando lenemente os cantos das folhas, deslizando-as amodinho para não alterar o ar requieto das estâncias. Aguardando o monstro: sabedora de que vai aparecer e desejando que não, que quiçás a autora foi esperta e o monstro é só um pesadelo. Juro que sentim tesar os músculos dos meus braços ao começar cada novo capítulo, arrastando os olhos por entre as manchinhas pretas do papel para adevinhar o nome dele, as suas palavras, as suas pancadas. E adia(nta)r-me o espanto.

A bolha na gorja. A goela de Kambili bota toda a narrativa com os fonemas engasgados, incapazes de borbulhar. Muda. Mas não sossegada. Ela quer falar e não pode. Uma espinha impede-a de proferir os sons, acumula-lhos na garganta e a mim acabam por me doerem as amendoadas amígdalas. Leio e dana-me a saliva quando a envio. Kambili admira todas as pessoas que a envoltam e podem falar. Essas que agromam palavras como abrochos novos de primavera, assim coma quem. Como é que se faz? Há tanta violência nessa privação da fala... Ela “aprendeu a arte de chorar baixinho”, a arte de calar. 
 O dizer não dizendo. A arte da autora. Aprendida de Kambili. Essa capacidade para contar-nos todo por omissão. Para dar a calada como explicação. Para manter o segredo á vista no meio do barulho. Mamã coxeia. Para que contar a causa. Já imos sabendo. E pouco e pouco, assim que confiamos, dizer. Dizer com todas as letras. Dar nome à brutalidade. E nós desejando não ouvir.

A cegueira. A Amaka, curmã da protagonista, não vê por trás da mudez de Kambili. Representa-nos a todas. A todas as que não queremos saber das traseiras, dos assuntos domésticos. Amaka tortura Kambili com comentários que crava, certeira, em cada uma das feridas que ela arrasta. E nós, leitoras omniscientes, condenamos esse martírio, mas damos em pensar em quantas traseiras não vemos, em quantas Kambilis machucamos sem cair na conta, como sim cai Amaka.

O cilício e o riso. É Kambili a primeira a mortificar-se. Um cinto áspero de arame couta os seus movimentos, os seus pensamentos. Esse cinto é o que a atragoa. As aprendizagens do pecado, da obediência. Kambili nem sequer é quem de rir. O traço que a define. A ausência de risadas, mesmo de tímidos sorrisos, na sua boca. E o cilício dos seus pensamentos controla cada tentativa que os seus músculos fão de ceibar-se. E nós, lendo, sentimos esses mesmo arames nas nossas coxas, coutando a dança.

O monstro. Eugene. O homem piedoso e conhecedor da bíblia. O homem que não consentia nem admitia o suborno. O homem que dava dinheiros a hospitais infantís, lares para bebés órfãos de mãe e antigos combatentes estropiados da guerra civil. O pãe. O mesmo que quando eram crianças deixava-as escolher o pau com que ia vareá-las, e que depois já não. O mesmo que chorava após provocar o aborto da mulher com uma malheira. O mesmo que Kambili ainda escutava pisar nas escadas, disposto a desfazê-la em pedacinhos. E lemos o Eugene e reconhecemos tantos eugenes que a tensão se instala, afeita, num apertar de dentes[1]

A casa e a praça. Os muros da casa nunca se correspondem com os muros da comunidade. Têm diversas alturas e grossores, mesmo são construídos com materiais diversos. O homem que defende a oposição na praça pública, o mesmo que financia um jornal clandestino e tira trabalhadores da prisão e ajuda às famílias e contata com as forças estrangeiras, fora a ditadura!, o mesmo homem, constrói um inferno na casa, desconsente a oposição, anula as vozes que o acompanham e faz das alcovas calabouços e desfaz a sua família e impede-a de tratar com a beleza do mundo. A nós é-nos outorgado o privilégio de ver por dentro desses muros. Por vezes, prefeririamos fechar os olhos.

E não obstante, há silêncios que são diferentes. Porque trespassados os muros, eis a vida. E onde há vida, não há esperança, mas a oportunidade de viver. De abandonar a alerta. De relaxar o exercício de contenção. De deixar os músculos expandir-se para criar um sorriso. De picar a bolha da gorja. E falar.  

A cor do hibisco é a cor do sangue. A cor do hibisco é a cor de um novo dia.


Chimamanda Ngozi Adichie: A cor do hibisco.
Edições ASA, 2010. Tradução de de Tánia Ganho



[1] A intolerância religiosa. Leio na contracapa que Kambili é vítima da intolerância religiosa. Eu e o JM Coetzee não lemos o mesmo livro. Porque eu o que li foi um manual do exato maltratador. De como exercem o seu poder de dominação os maltratadores e de como as vítimas aprendem a sobreviver-lhes.

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