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San Antonio meditando. El Bosco |
Por Susana Sánchez Aríns
Maravilhada. Assim me acheguei ao deserto. Semanas me levou esgaçar o
fino véu que o envolvia. E apartar o santo protetor ao que estava oferecido. O
deserto.
E maravilhada fiquei, entrada nele, polo tato de areia das folhas, da
capa, dos versos. Polas estampas de santinhos a marcar a peregrinação, o
caminho da água.
Porém a maravilha paralisou-me. Tão assombrada estava que uma bruma
cegou a leitura e impediu que eu percebesse. Falava a poeta de desertos nunca
por mim transitados. De filmes que eu não visionara, pinturas das que nunca
antes soubera, cervos encontrados em tapetes sem tecer, bíblias que há tempos
procurei olvidar. Marcas alheias aos meus marcos de referências. E perdim-me.
Fez-se o deserto grande de mais para mim. Vivim a desorientação que cresce nas
dunas. Maria, não sou digna dos versos que escreves...
E umas palavras lidas anteriormente[1] chegaram
para salvar-me.
Que não. Que não busques compreender a poesia. Esquece Indrig Bergman,
Fra Angélico, Jean Renoir. Só lê. Só atende.
E recorrim o deserto. Como eremita. Com calma. Sem pressa. Para que o
magma versal me conformasse.
Erige-se o poemário como sagrada escritura, tomando dela os versículos como
meio, e oferecendo-nos uma travessia polo silêncio e a contemplação da dor
própria e dos próprios medos. A morte atravessa o deserto com nós[2], pois só
no deserto se aparece, quando a sede, quando a calor abafante, quando a
loucura, para nos instruir.
O deserto fala-nos da tronçadura sem marca, dos golpes sem hematoma à
vista que destroem o mundo. Fala das catástrofes apagadas, como onda que
desaparece os castelos na praia, chuva que dissipa as pegadas dos nossos
passos, lava que calcina quanto vivemos.
E ao tempo, o deserto [re]constrói. Porque uma palavra escrita chegará
para salvar-nos. Entrar no deserto é voltar à casa, recolher-se no íntimo.
Sentir que o que acontece baixo a súa pel é o que acontece baixo a pel do
mundo. E encontrar o coração, esse cadelinho adestrado, sabendo que não foi
aniquilado, que sobreviveu à cirurgia e ao post-operatório.
E atravessamos o deserto e pechamos a última duna, ou página, não
sabemos, e duvidamos. Lemos a crônica de um retiro, o livro do desamor, a
descoberta da paixão, ou todas essas cousas: a forma mais brutal da plenitude.
Eu, leitora indigna, fago como aquelas personagens do filme, e lendo os
versos d'O deserto, o conto dos cervos que são água, o Deucalião do casal
que abrolha pedras, vejo os corpos sepultados polo Vesúbio. Restituo os
vínculos, todos, entre as palavras.
Assim percebim.
María do Cebreiro: O deserto. Apiario Editora
2015.
[1]“A poesía lindaría coa sorpresa,
a sospeita, a estrañeza e o mistério. Cada palabra linda co
mesmo, e ó mesmo tempo coa certeza.” Celso Fernández Sanmartín, em Poesía
Hexágono: Ollada e experiencia. Proposta e resposta nas aulas. Apiario 2015
(pág. 62).
[2]Atravesar a vida significa atravesar a morte.
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