A las anochecidas

Emigrantas galegas en Suíza. Foto: Arquivo CIG-Emigración


Por Susana Sánchez Aríns

       Todas conhecemos o conto do angaço, daquele moço retornado da emigração que já não recorda a língua nem lembra a aldeia nem os nomes
da labrança      das vacas      das terras.
Até que pisa os dentes do ancinho e no golpe shock testerada recupera a cultura: ai minha mãe, o angaço! Aprendim o conto de pequena, na escola, na casa, nem sei onde. A moral da história: não sejas desleigada, não esqueças dónde ves, não fales castrapo. Não fales castrapo.
E aprendim a não falar castrapo. A ter cuidado com a língua. A fugir dos galeguismos no castelhano. Dos erros linguísticos.
A olhar com condescendência àquelas que falam corunho, voy venir petó a la puerta te vi en el camino.

Sempre nos salva a poesia. De nós mesmas, mesmo.

Porque chega Luz Pichel e coloca-se na beiramar     na beiravía     no bordo na margem mais marginal.
Escreve os seus textos na língua que não é língua, no espaço evitado nos atlas linguísticos, no chirrante roçamento entre issoglossas. No erro. No castrapo. E instala-se no lugar que não é lugar, entre as literaturas, no vazio de não ser todo galego, de não ser todo castelhano, em quê nação a reivindicamos? Em que estante
da livraria       da montra       do cortinglés
a vendemos? Quem lhe faz a recensão, protexta ou babelia? Ninguém? Admitimo-la no sistema, escrevendo desde o assistémico inestético?
A mistura de galego e castelhano, a incorporação de vocábulos multi-linguais, a aparente tradução de versos, para nós inecessária, a desaparente adaptação de frases, a reiteração duplicada de ideias, descoloca-nos como leitoras e ajuda assim a despossuir-nos da estabilidade que nos outorga dominarmos a fala, a escrita. Como se alguém nos arrancasse
(d)a língua      (d)a terra        (d)a casa.
E nessa incomodidade, lemo-nos tra(n)sumantes, tra(s)sumadas, co(n)sumadas de tenrura por essas emigrantas sem lugar, essas filhas de emigrantas sem língua, essas harriet tubman sem nome, essa língua sem issoglossas.
Eis a força do poemário tra(n)shumancias: encontrar a forma perfeita para o fundo a representar. A tra(n)slíngua corresponde-se com o sem-lugar ao que se vem condenadas as emigrantas, as filhas das emigrantas. Nem da aldeia nem da cidade. Nem de Além nem de Madri. Nem galego nem castelhano. Uma tra(n)slíngua
para um não-estar        para um não-ser        para um não-falar,
para contar aquilo que não é comprensível em todo o seu significado se não vives aí, no não-lugar.
tra(n)shumancias é a epopeia da emigração, impossível de narrar. É a voz das que marcharam e voltaram e marcharam. A voz a berrar-nos desde aí, desde o alto de la escalera voladiza e perguntando, serena e temperada, se a entendemos. E a arte de Luz Pichel é fazer que as entendamos, que as comprendamos, que as respeitemos, escrevendo-as desde a língua que não é lingua e desde o lugar que não é lugar.
Luz Pichel escreve a las anochecidas e devolve a dignidade ao castrapo e às utentes, sobretodo às utentes, do castrapo, aquelas que eu olho desde o alto da autocomplacência/desde el alto de la comodidad sem ter parado antes a escuitar que é o que berram/gritan.

Luz Pichel: tra(n)shumancias. Ediciones la Palma, 2015.


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