Por Susana Sánchez Aríns
Abro
as lapelas de Oroonoko e leio os biodados de Aphra Behn. Uma vida
muito chamativa, lá no século XVII. Leio a contracapa e merco
imediatamente o livro, já que no ressumo aparece-se como uma mui
interessante denúncia do sistema escravagista.
Leio.
E não gosto. Leio. E reflexiono. Muito.
Oroonoko
narra a história de um príncipe de Coramantien, na costa da atual
Ghana, que partilha apaixonamento com o rei do lugar. Este, para
ficar com a mulher, atraiçoa ao moço e vende-o como escravo. A ela
também. Oroonoko é trasladado ao Surinam, onde o conhece a
narradora, inglesa que viajou com o pãe, representante do governo
británico. Ela é que conta os factos. No início da estadia na
fazenda, Oroonoko reconhece a sua amada numa escrava admirada pola
sua beleza e recatamento. Casam e aguardam ser libertados dada a sua
origem nobre, como muitas pessoas, entre elas a narradora, lhe
prometem. Vendo que a libertação tarda e Imoinda está prenhe,
Oronooko argalha uma fuga, que fracassa, é salvagem e exemplarmente
torturado polo capataz do seu amo; desiludido, sem esperança de
futuro, decide fugir novamente para suicidar-se após assassinar a
sua parelha.
Recomendaria
este romance? A autora é mulher, a primeira escritora inglesa
profissional, uma precursora. Fez teatro, poesia, novelas e
traduções. Foi uma grande defensora da igualdade de direitos das
mulheres.
Porém
avanço na leitura e não consigo aderir.
Qual
o posicionamento perante o escravagismo da narradora/autora (Aphra
Behn identifica ambos os roles)? A defesa de Oronooko e a crítica à
sua condição de escravo, sim, mas unicamente a dele. Porque o
injusto da situação de Oronooko não é que pertença forçadamente
a outrém, isso é legitimado até pola personagem do príncipe, mas
porque é nobre. Quer dizer, Aphra e os amigos que apoiam a
libertação de Oroonoko, fam-no porque reconhecem nele um igual, uma
pessoa da sua mesma classe, e não consideram digno que com a sua
educação, elegância, valentia, gentileza e fidelidade sufra a
mesma situação que os outros negros. Reconhecer Oroonoko como
elegante, valente, gentil ou fidel, cousas que nunca serão os
negros, entendamos, não é contraditório para Aphra Behn e os seus
amigos: a causa é dupla, a origem nobre e um professor francês
pagado polo rei pãe para educar o príncipe. Ou seja, a sua
humanidade é em realidade europeia.
Oroonoko
é rebaptiçado polo seu protector, quer dizer, apropriado e mudado
de identidade, ao chegar às américas. Recebe o apelativo de César,
nome bem significativo. Quando Oronooko é lategado e torturado,
Aphra Behn condeia o assanho dos autores do castigo, embora desde a
postura paternalista de desejar para Oronooko um amo inteligente e
culto. Inteligente como para não danar a mercadoria, podendo
submeter pola persuasão os exemplares que outros domeam atravês do
chicote. È mais, deseja para o príncipe e o resto de escravas um
amo inglês, menos ruim e violento que os holandeses que tomaram
posse da regiom. Em realidade, a sua novelinha pretende defender os
direitos coloniais de uma metrópole sobre outra: os nossos sabem
tratar escravos sem os maltratar, não como os nossos rivais.
O
resto de escravos e escravas estão ausentes da narrativa, mesmo
Imoinda. Semelham sombras fantasmais que pululam polos espaços sem
chegar a ser vistas, sem ninguém atender-lhes. E claro é, carecem
de voz própria.
Enfin,
durante o discurso, Aphra Behn posiciona-se claramente como branca,
nobre e inglesa e, ainda que em algum momento aluda à sua condição
de mulher para defender o seu discurso alternativo, em nengum
momento, por exemplo, duvida do direito de Oronooko sobre a vida da
sua parelha e justifica o brutal assassinato desta. Pratica esse
relativismo cultural do elas gostam, elas estão afeitas, elas
adoram como deus ao seu homem.
Resultou-me
impressionante ler os parágrafos adicados a relatar uma incursão na
floresta para conhecer um povo ameríndio resistente à colonização.
A narradora obtém conclusões idênticas às de Pero Vaz Caminha na
sua Carta do Achamento do Brasil ou às de Cristóvão Colombo
nos seus Diários de Bordo: os índios são assim tão
inocentes que podemos fazer com eles o que queiramos.
E
aqui reflexiono. Muito. Merece Aphra Behn um lugar entre as minhas
precursoras? Não devo ter em conta as intersecções entre o gênero
e outros tipos de dominação e exclusão? Não pode valer-me o
discurso de Aphra Behn, não podo justificá-lo. Haverá quem refute
que é uma mulher do seu tempo, que vive no XVII mais colonial, porém
esse é o discurso que eu não admito quando me são oferecidos
discursos sexistas do XVII. Porque seguro que algures,
não sei onde, há textos
e discursos de mulheres anti-coloniais, anti-racistas e feministas.
No XVII também. São essas as que merecem um espaço nas minhas
estantes.
Aphra
Behn: Oroonoko. Tradução: María Fe González
Fernández.
Hugin
e Munin. Compostela 2012.
Só a pluma duma mulher podia celebrar a sua fama?
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09:07:00
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