No araeal da Ulha. Por Isabel Rei Sanmartim

Isabel Rei, no I Día das Galegas nas Letras.

Por Isabel Rei Sanmartim
 Artigo escrito para o I Día das Galegas nas Letras, adicado a Dorothé Schubarth.
NO ARAEAL DA ULHA
(15 DE AGOSTO DE 2014)

Há cousa de cento e cinquenta anos, não muito longe deste lugar em que nos encontramos, uma fascinadora senhora tocava a sua guitarra sentada no jardim do paço com a vista perdida no verde vale da Ulha. Os olhos claros e a imponente figura de Avelina Valladares dedilhavama composição duma peça íntima, breve testemunho do seu interior. Dentro da casa soava um piano que a família tinha trazido de Samora em carro de bois. Os fluentes dedos da Luísa corriam sobre as teclas introduzindo o tema e, ao instante, as irmãs Segunda e Isabel começavam a cantar:

“Passei pola tua porta,
erguendo os olhos e vim-te.
Não che pude dizer nada,
não sei como não morrim-e”.

Era a estrofe que Preciosa de Roque lhes cantara semanas antes, pelas festas do solstício, e que Marcial tinha preparado para juntar às outras num cancioneiro que estava a elaborar. O violino, recém tocado, descansava sobre uma das poltronas da sala de música e, como o Sérgio não estava, a flauta sonhava silenciosa as melodias que lhe percorriam o corpo quando levadas do alento do seu dono. Na Casa Grande de Vilancosta passava-se o serão, como muitos outros serães daquele cálido mês de agosto.

Pode que isto tudo e o nome de Preciosa de Roque seja invenção minha, ou eu uma invenção dela, mas seja como for, com esse nome ou com outro, muitas Preciosas de Roque existiram na vida dos primeiros recolhedores de cantigas. Era o ano 1867 quando Marcial Valladares dedicava às suas irmãs aquele cancioneiro feito de melodias populares, que as gentes de Berres puderam escutar  interpretadas a canto e piano, como Schubert tinha feito decadas antes com as canções populares da sua terra.

E foi de lá, da Mitteleuropa, de onde chegou um século depois outra Schubarth, nossa Dorotea.Nos tempos em que a primeira autoestrada abria o ventre dos montes entre a Crunha e Compostela, ela começava uma épica viagem pela Galiza seguindo o exemplo deFontão, visitando aldeias e lugares, encontrandose com as pessoas e suas famílias. Meteu-se em convívios, fiadeiros, leiras e lareiras, sentiu como o estar arredor do lume morno estimulava a fantasia das gentes que depois dos trabalhos do dia rompiam a cantar e tocar em arroutos de memória imemorial. Ela a desfrutar e tomar notas. E tudo a ficar gravado em fitas cassete, uma pequena vantagem dessa modernidade que nos condenava à desaparição.

De Viveiro a Vilardevós, de Candim a Ribadúmia, o mapa das cantigas galegas não se fizera num dia nem em dous. Foram precisas as constantes visitas anuais da Dorothé, o saber achegar-se às pessoas e a paciência da espera, necessária para o agrumo das sensações que traziam o canto, os contos, a música, o baile. Durante cinco anos rastrejou as ilhas de conhecimento popular que eram @s avós para elaborar os sete volumes do seu Cancioneiro Popular Galego, publicado na década de oitenta em sucessivas edições.

Hoje queremos dedicar os nossos labores à melhor homenagem dessa mulher, suíça e galega que com tanto acerto estudou onosso sentir musical. A sua tarefa continua a memória das Preciosas de Roque, como fizeram as Avelinas e as Rosalias, intérpretes que souberam transmitir-nos a beleza das fontes musicais da terra. A publicação do cancioneiro dos Valladares, em 2010,é mais um contributopara o conhecimento, difusão e identificação com o nosso passado cultural.

Aqui, nos verdes campos da Ulha, no mês de agosto de 2014, damos por recebido esse tesouro vivo que é nossa música e declaramonos conscientes de que depende de nós para existir. Adornado o cabelodas antigas grinaldas, pulsamos as cordas com renovada energia para que as árvores testemunhas ouçam,nas nossas vozes e nas das crianças, os galegos cantares feitos de folhas novas.
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Isabel Rei Samartim. Titula-se em Guitarra no Conservatório Superior de Música da Crunha. Foi premiada no Ciclo de Jóvenes Intérpretes da Fundação Pedro Barrié de la Maza (Crunha), no Concurso Internacional de Guitarra de Cantabria (Comillas), no Concorso Internazionale di Chitarra Fernando Sor (Roma) e nos Concursos Internacionais de Guitarra Vila de Petrer (Alacant) e Andrés Segovia de Linares (Jaén). Tem participado nos Festivais de Guitarra de Udine (Friuli, Itália) e Semana da Guitarra (Vigo), atuando também no Via Stellae e Festigal (Compostela), na Semana do Corpus (Lugo) e nos Colóquios da Lusofonia (Bragança). Atualmente trabalha como professora no Conservatório Profissional de Música de Santiago de Compostela, atividade que combina com recitais na Bélgica, Alemanha, Itália, Portugal e Galiza. Em 2010 publica junto com José Luís do Pico Orjais a edição crítica do cancioneiro popular «Ayes de mi pais» de Marcial Valladares, Editora Dos Acordes. No mesmo ano o Anuário de Estudos do Barbança, ou revista Barbantia, publica a sua “Suite Rianjeira”, conjunto de seis melodias populares arranjadas para guitarra.Prepara a edição das obras para guitarra do Arquivo Valladares, acervo musical da família Valladares (Vilancosta, A Estrada, Galiza), a conter mais de 80 obras para guitarra, entre outros instrumentos.

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