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Foto: Susana Sánchez Aríns |
Por Susana Sánchez Aríns
Um
senhor apampa entanto molha uma madalena no chá, e coloca a
literatura numa epifanía sensorial e mnemónica, oferecendo um
depurado exemplo de reflexão filosófica sobre a passagem do tempo,
que some raudo e intangível. Uma mulher permanece muda na missa,
incapaz de acompanhar a feligressia no canto, e leva as
insignificâncias da vida à literatura. Porque molhar uma madalena
no chá é desses actos que mudam a história.
Recebeu
Alice Munro o Prémio Nobel por [é dizer, apesar de] descrever “um
mundo anódino, limitado”, um “mundo de mulheres”, retratos de
“gente vulgar” [é dizer, mulheres vulgares]; isso sim, mui bem
escrito, como faria o melhor Tchekhov.
Hei
de admitir que a frasse que chicotou a minha curiosidade foi essa de
que ainda a escrever sobre mulheres, não ser Munro complacente
com a psicologia feminina. Chicotou-me a curiosidade e o orgulho,
porque nunca escuito essa inecessária justificação para autoras
que edificam a sua obra em volta de psicologias masculinas.
E
dei em ler Amada Vida.
E
o que encontrei, sem necessidade de derrubar muros entre as linhas,
nem de sisudas análises genérico-gramaticais, foi um impactante
catálogo daquilo que no feminismo denominamos micromachismos:
essas subtilezas da vida diária que nos recordam às mulheres, no
anódino do dia a dia, fora das grandes agendas políticas, qual é o
nosso lugar nesta sociedade.
É
lógico que ao narrar vidas em apariência vulgares, pequenas,
anónimas, mulheris, agrome delas uma forénsica disecção das
pequenas e contínuas presões que uma mulher vive para orientá-la a
ser a-mulher-que-deve-ser. Porque Munro faz literário o clássico
berro feminista de que o privado é político, lema que aínda hoje
muitas não percebem.
A
menina que aprende na escola, sem saber quando nem como, que andar em
bicicleta não é apropriado para raparigas; a outra menina que não
podia ver os filmes do cinema em que trabalhava, a narradora que
aclara ser professora não de literatura mas de matemáticas; a
mestra que teme caminhar polo bosque sozinha, a poetisa aborrecida de
ter que aclarar ser poetA; e tudo isto deslizado assim, sem mais, sem
necessidade de complementária aclaração. Porque somos as leitoras
as que devemos realizar as implicações correspondentes: ai, a
virgindade, ai, o desporte de mulherõas; ouh, há mulheres
cientistas?, passear acompanhada não polo medo, mas polo que-dirão,
mulher a ler livros sérios, perigosa!
E
o melhor, para quem isto escreve, é o facto de muitas das
personagens, das vozes narrativas, não dar por isso, não serem
conscientes destas violências diárias que as limitam. Como na
realidade. E pavorosos, por magistrais, me parecerom os contos Porto
de Abrigo (pensai no título uma vez lido!) e Vozes. A
inocência, melhor cegueira, das duas vozes narradoras perante as
violências que presenciam, é um acaído reflexo da cegueira
quotidiana que suportamos.
Só
assim é comprensível que onde uma escritora deixa claros os seus
referentes
literarios -femininos-, outros insistam em proporcionar-lhos
diferentes -masculinos, claro-. Ou que a única maneira de elogiar
uma autora seja compará-la com um homem.
A
leitura de Amada Vida chicotou
algo mais que a minha curiosidade e o meu orgulho. Chicotou também o
interesse pola comparação: hei-lhe entrar aos contos do
Munro russo.
Alice
Munro: Amada Vida. Edições Relógio d'Água.
Lisboa
2012.Tradução de José Miguel Silva.
A Tchekhova canadiana
Reviewed by segadoras
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11:06:00
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