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A raínha Lupa vista por Miguel Ximénez no séc XV |
Por Susana Sánchez Aríns
Do
cimo do Pico Sacro, visível desde a janela da cozinha do Fojo, até
São João da Cova, que está aló embaixo, nas fonduras despenhosas
do Ulha, vai um passadiço. Por essa galeria andava ao seu antolho,
subia e baixava, em especial polas noites, a raínha Lupa. Seique
esta moura, porque a maioria diz que Lupa era uma moura, como as que
ponhem tenda e vigiam castros e penteam cabelos com pente de ouro;
enfim, seique esta moura usaba as minas para baixar ao rio, uns dizem
que para lhe dar de beber aos seus cavalos; outras que para se banhar
espida no rio e encontrar-se com homens. E um dia passárom uns
senhores com um cadaleito, que seique era o do Santiago Matamouros
-os outros mouros-, e ela ofereceu-lhes um carro de bois para
ajudá-los nos trabalhos, que em realidade eram touros bravos. Queria
ela que o Santiago não chegasse com bem a Compostela. Porque a
raínha Lupa era malvadissíssima.
Quando
eu escuitava esta estória, ou lia, nem sei quando, duas imagens me
vinham à cabeça: uma, a raínha Lupa como a madrasta malévola de
Branca-de-Neve, essa da versão disney vestida em preto e
sempre incomodada; a outra, contrastada com esse maravilhoso mundo de
reis e princesas; as únicas pessoas que eu via andar com vacas eram
as minhas vizinhas do Fojo, com as suas batas cruzadas e as botas de
goma. Não entendia muito bem a que andava a raínha de
Branca-de-Neve com bois e vacas, cousas da aldeia...
Com
o passo do tempo, soubem que a raínha Lupa não só governava o
nosso Pico Sacro, mas também era ama do monte Lobeira, nas terras do
Salnés, onde outra vez contava com túneis que a levavam das alturas
à água; e descobrim depois que tinha trono, tomba ou cadeira no
Pindo carnotão, e em cada recanto do país que guardava memórias
populares do passado.
E
passado mais tempo ainda, lendo Pinkola
Estés, soubem da figura das lobas, mulheres que recorrem as
tradições orais de boa parte dos sistemas culturais europeus, até
o ponto de fundarem románeas cidades. E não pudem mais que pensar
na possível relação entre a raínha Lupa, ama dos montes galegos,
e essa figura mitológica.
É
por isso que foi um gosto ler o ensaio de Antonio Barbosa, que
pescuda e põe em relação a personagem lupária com as divindades
da mitologia atlântica prévia à romanização e o cristianismo.
Partindo
dos textos do Códice Calixtino decobre-nos as íntimas
ligações entre a narração da translatio apostólica
e as lendas irlandesas que explicam o conceito da morte e do outro
mundo. Há todo um grupo de elementos arquetípicos que permanecem
fossilizados nas lendas sobre Lupa e os seus castelos, chegando o
autor à conclusão de que esta moura não é outra cousa que o
vestígio dum paleo-mito estendido por boa parte da Europa. E chega a
sugerir, ou a afirmar, que toda a lenda da fundação da cidade
compostelana não é outra cousa que uma tentativa (lograda) de dar
carimbo de religiosidade cristã a um espaço sagrado previamente
existente, uma necrópole pagã cuja entrada governava a deusa do
além, a loba que guia ao outro mundo.
Serve-nos
esta obra para conhecermos e entendermos o processo de folclorização
e deturpação de todo um sistema mítico religioso mutilado e
deglutido polo cristianismo, até o ponto de encontrar como
personagem compostelana (vencida polo santo, isso sim) uma
paleo-deusa atlântica. E claro, conhecemos e entendemos também como
neste processo as grandes prejudicadas são as figuras femininas.
Pois Lupa, Lupária, Loba, como quer que a chamemos, para ser
aceitada no sistema medieval, é reciclada em forma de mulher
poderosa, mas pagã, lasciva, enganadora e perversa. Todo um modelo
do que não devemos ser, seique, as mulheres.
E
assim a aprendemos quando nenas, olhando o Pico Sacro desde a janela
da cozinha.
Antonio
Balboa Salgado: A raíña Lupa. As orixes pagás de Santiago.
Edicións
Lóstrego, Verín, Santiago 2005.
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