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Foto: Foshie |
Por Susana Sánchez Aríns
Quando
a gripe ataca, esse bechinho tão pequeno, aparece com ela a súbita
consciência da matéria corporal. Atrapadas no nosso dia a dia de
trabalhos, horas de carro, ansiedades vitais, lavadoras por tender,
jantares e relaxing cups, concebemos o nosso ser como um tudo
compacto. Um eu agigantado por uma sociedade louvadora do ego
e o individualismo.
E
chega a gripe e nos recorda que, ademais de sermos humanas, somos
corpo. Carne, vísceras, fluídos. E ataca o bechinho e de súbito já
não somos rosto mas mandíbula dorente, saliva espinhenta em
amídalas inchadas, nariz pinguento, músculo orbicular a comprimir
as meninhas até a dor, occipital em pleno choque tectónico contra o
parietal. Viramos corpo deconstruído em cada uma das suas centas
partes que também somos nós, mas nunca lembramos.
O
facto de sentirmos cada parte em por si, impede, quando a gripe nos
entra, que tenhamos aplicados os sentidos ao exterior. Concentradas
na nossa própria matéria, toda a matéria que nos é estrangeira
perde centralidade e desaparece do nosso horizonte de atenções. E
de comprensão. Abismadas nos nossos sons internos, perdem
significado os barulhos de fora. Lá vão os trabalhos, as horas de
carro, as ansiedades vitais, as lavadoras por tender, os jantares e
as relaxing cups.
E
desaparece a gripe e experimentamos o alívio de voltar a sermos um
tudo e a felicidade de sentir novamente a armonia entre as centas
partes do nosso tudo visceral. E vemos com outras meninhas, menos
comprimidas, o mundo que nos envolve. Com uma dor menor.
Como
uma gripe é o novo poemário de Chus Pato.
Um
bechinho pequeneiro que lemos como rebentação no meio dos olhos,
como pedrada em toda a fronte, golpe seco que nos fai tomar
consciência daquilo que esquecemos no dia a dia.
Lim
Carne de Leviatán como sendo convidada a um big-bang
vírico que devolve à matéria o protagonismo do início dos tempos
e a possibilidade de participar duma nova gênese.
Primeiro
foi o verbo, diz, seique, o livro dos livros. E não é certo.
Primeiro foi o fonema, diz-nos Chus Pato, o golpe de voz que desenha
mundos, sejam jardins, sejam desertos. A língua como poço de
barrena gutural que cospe água a pressão desde as capas freáticas
do pensamento. O som como um ovo cósmico de incalculável quantidade
de energia que forma, ao avançar do tempo, palavras, pensamento,
poesia. O mundo.
Reivindica
Chus Pato o poder criador da palavra. O nome que cai na Terra como
humus do que nasce a vida: Cando desaparezan todas as flores do
mundo / (Hecatombe / Dioivo) / entón as palabras agromarán / como
margaridas. / Digo unha flor
Lim
Carne de Leviatán como quem recorre a cronologia da
evolução da vida na Terra. Puidem observar, acompanhada da poeta, o
passo do berro à língua como o do procarionte à borboleta, da
améndoa ao gromo à árvore ao fruito.
Mas
não é o caminho evolutivo uma linha recta do aqui ao horizonte do
passado ao agora. Não. Porque observar não é perceber. Não é
comprender. Porque o big bang inicial provoca um caos de
pensamento e linguagem, uma nebulosa filosófica nas nossas mentes. E
isto acompanha-o a Chus Pato com a deconstrução, nas suas centas
partes, da língua poética: Non existen o que se di non existe
non ten existencia. Non existen, as palabras. Mas precisamos
perceber? Como com a gripe, o necessário é a expansão do cérebro
no baleiro. A súbita percepção da matéria.
E
quando acabamos a leitura, aliviadas, vemos com outras meninhas,
menos comprimidas, o mundo que nos envolve. Com uma dor menor.
Chus
Pato: Carne de Leviatán. Editorial Galaxia. Vigo 2013.
Um big-bang vírico
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19:23:00
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