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Tear. Foto: Juantiagues |
Por Susana Sánchez Aríns
Marco
Denevi, autor argentino, escreveu um micro-relato de título Tradução
feminina de Homero que nos faz chegar outra maneira de ver a
história, o mito. Segundo ele, para Penélope, as aventuras de
Ulises não são outra cousa que uma armadilha ao seu privado gozo
amoroso.
Temos
sorte as leitoras galegas de contar com a escrita de Begoña Caamaño,
pois graças a ela podemos publicamente gozar duma grande tradução
feminista de Homero. É tópica a expressão italiana traduttore
traditore, porém, Circe ou o prazer do azul faz-nos ver
que no caso de muitas personagens femininas a traição estava,
provavelmente, na escrita original.
A
traição de construir um imaginário cultural e mítico (chegado até
os nossos dias) no que a única maneira de trunfar uma mulher é
através da renúncia a ser ela, como faz Ateneia. A traição de
construir uma história na que o lugar reservado á mulher é a da
custódia da honra ou a de ser moeda de cámbio e engano em negócios
familiares e políticos.
Begoña
Caamaño constrói um romance no que dá voz a mulheres acaladas na
mitologia: a bruxa e a fiel esposa, dous dos arquétipos femíneos
próprios da tradição literária patriarcal, estabelecem um diálogo
no que se conhecem e aprendem uma da outra, uma na outra, as armas
que usa o poder hegemónico para mantê-las ocultas e em silêncio.
Só desse aprendizado em comum pode nascer, e nasce, a liberdade.
Circe
e Penélope, que seguindo o pensamento que ainda hojendia rexe a
sociedade, deveram ser inimigas mortais a competir polo amor do mesmo
homem, compartem as suas cuitas, queixas e protestos e conseguem, uma
com a ajuda da outra, dominar a arte de velas e ventos, navegar.
Como
n'A Cidade das Mulheres de Cristina de Pizán, Circe e
Penélope tecem juntas um cobertor que recolhe todo um manado de
deusas, ninfas e mulheres às que os seus amos só lhes deixárom o
caminho da morte ou a loucura se quisseram libertar-se. E esse
cobertor feito a meias será o que dê quentura e força a Penélope
para decidir o seu destino.
Muitos
são os pormenores que devem ser atendidos no romance de Caamaño,
cheio de referências e intertextualidades que fam dele um autêntico
manual de sororidade: a alcova de Penélope transformada, por arte de
Virginia Woolf, num quarto de seu; Laertes como o louco do faio que
não está assim tão maluco; a transformação, a nível textual,
dum texto epopeico, canto do herói, num intercámbio íntimo de
correspondência; a ilha de Ea, paraíso adánico para todas as
lilith que no mundo sofrem; a reflexão sobre a educação das
crianças, feitas inimigo interior, como cavalo troiano adentro das
portas da cidade; o juíço a Ateneia como remedo do juíço de
Paris; a conxura linguística contra o epíteto épico, substituído
por uma cornucópia de adjectivos afectivos, por um léxico
trabalhado com inteligência e sensibilidade; e essa Penélope, uma
Penélope imensa que o último que deseja, em contra da tra(d)ição
imposta, é a volta do amo(r)
-porque não há, no mundo em que vive, amo(r) que não
tiranize.
Finalmente,
esses versos de Xohana Torres, aos que Circe ou o pracer do azul
é acabada resposta:
existe
a maxia e pode ser de todos.
A
que tanto novelo e tanta historia?
EU
TAMÉN NAVEGAR.
Begoña
Caamaño: Circe ou o pracer do azul. Editorial Galaxia, Vigo 2009.
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