O veleno da tinta

Vagner Carvalheiro


Por Susana Sánchez Aríns

Somos herdeiras à força. Herdeiras da educação que as nossas mães, avós, antergas forom aprendidas a transmitir-nos.

E como herdeiras forçadas, quantas nos rebelamos contra esse legado, e renunciamos a ele, e renegamos das doantes e cuspimos nas mãos que nos entregavam o dote. E renunciamos ao nosso papel de belas adormecidas botando em face às mães ter-nos oferecido em herdo uma condeia.

A mãe, obrigada a ser outra que não queria ser, de asas decepadas após ter aprendido (e desejado) voar, após ter passado do sonho ao pesadelo, o único que deseja é evitar à filha a própria derrota, e para isso aprende-a a dormir em diazepám, na incosciência. Mãe que educa contra si própria para evitar à filha a mesma perda. Quantas vezes não consegue!
Todas as maçás levam dentro o verme da rebeldia. E a mãe, por evitar a Lilith a fama de Eva, enxerta inseticida na maçá, desabendo que a filha travará a fruta igualmente. E não, não podem as mães evitar o desastre. Só é possível essa escolha: ou verme ou veleno, ou a podrémia da vida enclaustrada ou a morte en revolta.
Um dos mais perigosos velenos que a mãe inocula na filha é o da tinta. Essa tinta que mata os castanheiros e que tão perniciosa resulta em mão de mulher. Por que me aprendes a ler se não é possível em mim a escrita, se o esmalte das unhas apaga a minha voz? A caligrafía dos poemas como rabunhadas de insurgência, a seiva da árvore como tinta sanguinosa.

A escova de cabelo envenenada, a maçá enfeitiçada, o cuitelo que emudece corações, uma ampla listagem de ervas prontas a ser usadas e o esmalte nas unhas são a herança que recebe a protagonista de Catálogo de Velenos, todas elas formas diferentes de fazer casar a mulher com aquilo que dela é aguardado. Com estes elementos joga a poeta para fazer uma releitura do conto popular da Branca-de-Neve, pondo em questão, de maneira poderosa, a figura da mãe.
Porém, o mito que, para mim, mais lhe acai a estes poemas não é outro que o de Frankenstein, onde a mãe cresce uma criatura que pretende perfeita mas que acaba por rebelar-se, usando como armas as ferramentas que lhe forom outorgadas para a obediência. Assim, a escova, a maçá, o cuitelo, as ervas ou as unhas, podem passar a ser os elementos que libertem a mulher das suas escravidões. Porque, já sabemos, a diferência entre mencinha e veleno só está na dose. E isso atira a filha à cara da mãe durante tempos e tempos: por que dime moldeaches / o meu corpo esta gaiola / se habías guindar-me no cuarto escuro?

Para só nos dias finais, ao usar a acetona e despintar o esmalte dos dedos maternos, descobrir-lhe os mesmos restos de terra colados às unhas, ocultos por anos de submiso disfarce. E caemos na conta de que também elas, mães, avós, antergas, eram herdeiras à sua vez das que antes foram, que elas também foram filhas envelenadas por mãos mutiladas, por mães decepadas. Porque o protagonismo inocente da Branca-de-Neve impediu-nos olhar duma maneira que não fosse despiedada a madrasta-mãe.

Eis que a criatura à fim conhece à criadora, quando é tarde e as duas morrem nas gélidas e árticas planícies.

Marilar Aleixandre: Catálogo de velenos. Fundación Caixa Galicia 1999.

Comentarios

  1. Susana, acabo de ver isto. Emocionante. Unha aperta moi grande. Marilar

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