De moscas e golfinhos

Susana Sánchez Aríns


Por Susana Sánchez Arins

Lim O Senhor das Moscas no licéu. Foi-me aprendido como uma fábula pessimista em volta da condição humana. Estão condenados os homens a ser lobos entre eles? Ou são os protagonistas vítimas duma educação baseada na disciplina e as hierarquias? Esse era o debate que nos era proposto. E essa leitura e esse debate tenho proposto eu ao meu alunado quando passei a ser mestra.

Dizem que no romance de Golding há uma re-escritura d'A ilha de Coral, um romance de aventuras que para ele era utópico e benévolo com o ser humano; há quem o veja também como uma revisão do mito do bom selvagem. Eu desconheço, mas acredito que Scott O'Dell bem puido ter concebido A ilha dos golfinhos azuis como uma re-escritura do Senhor das Moscas.

Após uma matança provocada por uns caçadores de lontras, os habitantes da ilha de São Nicolau, perto da Califórnia, decidem fugir. Mas no caminho do exílio Karana fica atrás, procurando o seu irmão pequeno. E fica sozinha sem que ninguém a resgate por infinitos soles e eternas primaveras...

A ilha dos golfinhos azuis oferece, contrastando com o Senhor das Moscas, uma imagem em positivo dos seres humanos: Karana procura inicialmente a vingança -contra aqueles que mataram seu irmão-, mas consegue dominar e superar esse sentimento; Karana aprende a viver na natureza sem fazer dano aos outros animais e ela mesma decide deixar de matar para comer; impressiona especialmente a capacidade da rapariga para apanhar-se sozinha, para superar a dureza da solidão, através do empoderamento.

Karana reflexiona sobre a sua condição de mulher e como isso marc(ou)a o seu desenvolvimento vital: por exemplo, cai na conta de que graças ao facto de ser nena, conhece as técnicas de armazenagem de alimentos e de preparação de mencinhas e apócemas curativas. Porém, tem dificuldades para construir arpões e lanças, o que faz que gaste tardes e cairos de foca em fracassadas tentativas até dar com a técnica acaida. Sem embargo, o mais duro para ela é superar o medo infindo aos deuses, pois se uma mulher caçava provocava automaticamente a sua ira. As suas dúvidas e temores são equivalentes aos de tantas raparigas que rompem com as tradições impostas polas suas comunidades.

Se atendemos um pouco veremos como A ilha dos golfinhos azuis está construída (ignoro se intencionadamente) em contraste com o Senhor das Moscas: perante uma panda de nenos, uma nena sozinha; perante os representantes da cultura hegemónica ocidental, a membra duma comunidade indígena minorizada; perante a aparente civilização, o “atrasso” civilizacional; perante a obsessão pola caça, a renúncia à mesma; perante o medo às bestas interiores, o diálogo com os antergos. Enfim, perante o pessimismo, o optimismo...

E foi ao ler esta história que me assaltárom as perguntas que ninguém me figera sobre o Senhor das Moscas: por que é essa uma fábula sobre a condição humana se nesse romance não aparece uma só mulher? Este é um elemento que nunca ninguém põe em destaque nos comentários e resenhas sobre a obra. È que ninguém o considera importante? Como podes fazer reflexões sobre as maldade humana, a inocência perdida, a civilização versus o selvagem, sem antes convidar à alegoria à metade dessa humanidade? Não deveriamos então falar de fábula sobre a condição masculina?

Por que eleger entre maldade inata ou educação autoritária? Não são esses meninhos das moscas simplesmente o produto eminente duma sociedade patriarcal?

Agora, a minha proposta ao alunado é ler as duas obras e reflexionar.

William Golding: Señor das Moscas, 1954 (edição de Sotelo Blanco 1996, tradução de Xosé María Gómez Clemente).
Scott O'Dell: La isla de los delfines azules, 1960. (edição de Noguer 2010, tradução de Agustín Gil Lasierra).

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