As meninas, de Lygia Fagundes Telles

Angeles Santos Torroella, Tertulia (The Gathering), 1929

Por Susana Sánchez Aríns


Três eram três... Três eram três?
As meninas está protagonizado, não por uma, mas por três mulheres. Isso já faz dele um romance diferente. Lorena, Lia e Ana Clara são três adolescentes universitárias que convivem num pensionato regido por freiras. As três meninas não respondem a um padrão tópico de donzela, senhora ou bruxa, sendo cada uma em si, uma única e diferente donzela, senhora, bruxa.
Como a escritora combinou uma voz onisciente com a narração em primeira pessoa por parte de cada uma das meninas, contamos com uma perspectiva caleidoscópica de todas as personagens que aparecem na trama. Nada a ver com esses folhetins de protagonistas aborrecedoramente planas e só apaixonadas.

A alcova
O espaço privado e ausente da vida pública, feminino por tradição, a alcova, é o escolhido como centro da acção. Só aí as pessoas são livres de fazer e dizer, com a vida pública controlada e vigiada. Nas conversas de dormitório, sabemos da favelização, da MPB, das torturas, do Guevara e de Malraux, do estatuto do índio, da vaga de drogadição, da impunidade delinquente...
Polas janelas abertas à calor da noite, entram os sons duma cidade barulhenta, amedada e baixo suspeita, onde qualquer sombra, qualquer murmúrio, pode ser o sinal da delação.

E na alcova... Sherezades
As meninas, nas suas alcovas, levam o sexo à boca. A sexualidade é mais que praticada, fabulada e discutida. Vivemos com elas desde a submisão opressora aos roles tradicionais ao questionamento desses modelos e a proposta de alternativas. E, especialmente, é patenteada a utilização do sexo como arma de destruição massiva.

O casulo e as borboletas
É o pensionato uma metáfora do Brasil e são as meninas uma alegoria das brasileiras, casulo a envolver o becho-da-seda. Na construção de cada protagonista, a autora revisa os posicionamentos do seu povo perante a ditadura militar: a passividade teorizante, a rebeldia inoperante e o alheamento. Lorena a aguardar um telefonema sem ousar ser ela quem marque os números, Lia enredada em actividades de guerrilha urbana que não conseguem mudar cousa alguma, Ana Clara como alacrám, a dar-se no lombo a picada venenosa destinada ao mundo. A mestria da escritora foi abrolhar representações coletivas partindo de personagens tão particulares, tão historiadas.

Quanto tempo?
O mundo está parado: há greve estudiantil. A solheira tropical impõe um ritmo lento à cidade. E um parêntese de calma sudorosa se instala na vida das meninas. Um compasso de espera que podemos associar ao fim duma época. Pouca disposição tem o povo para derrubar o sistema. Só sentar e aguardar, como Lena, o timbre do telefone, a queda do ditador.

E tudo iso quando?
As meninas é um romance brasileiro de 1973. Lygia Fagundes Telles escreveu-no em plena ditadura militar, com a censura e a força do patriarcado a marcar o ritmo da escrita e da edição. Porém isso não a travou. Tem fama este romance de ser o primeiro na literatura brasileira a descrever as torturas policiais.
Ainda assim, não foi isso que me surprendeu na primeira leitura, mas a ousadia de colocar num texto meninas a falar de sexo, meninas a fazer guerrilha urbana, meninas a consumir drogas, meninas e monjas a falar de tormentos, meninas a praticar sexo, meninas a falar de drogas, meninas a conversar sobre revolução.

Era 1973. Muitas ainda não nasceramos, mas já havia escritoras a escrever subversivamente de meninas e subversão.

Saravá, Lygia!

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